Helena Arcoverde

A bordadeira

Posted in Conto by helenarcoverde on 08/12/2012

Cinco filhos, um rio e mais de meio século de trabalho. Esse era o saldo que selara sua vida. Debruçada sobre o bastidor, entrelaçava os pontos. Minúsculos sapatos eram ligados ao quimono da personagem. O coque achureado, a boca vermelha que ela nunca se atrevera a desenhar em si própria, as mãos brancas e envelhecidas movimentavam milimetricamente uma composição de cores e pontos. Nunca se soube se havia indignação naquele bordar. Apesar do ganho minguado, orgulhava-se da aproximação que fazia entre as cores. É arte, dizia sempre.

A cadeira na qual exercia o ofício era de couro, larga, reforçada. O assento possuía sinuosos traços que indicavam o tempo e a secura do material. Mas já se acostumara a ela. Moldara naquela cadeira seu cheiro, o formato do seu corpo, suas lamúrias. No encosto, uma madeira lisa e ainda viçosa amparava seu corpo largo. Tachas enegrecidas arrematavam o encontro entre o couro e a madeira do assento.

Os óculos se movimentavam ante a presença do suor. E, continuamente, ela os elevava, em um movimento eterno e conformado. Apesar de reclamar desse desassossego, na maioria das vezes parecia nem mais notá-lo. Pingos de suor caiam no paninho de prato com motivos orientais e ela encostava o lenço levemente no rosto, temendo machucar os inúmeros sinais contraídos em face da incidência do sol na pele.

Na safra do caju, aceitava menos encomendas e dedicava-se a fabricar cajuínas. Mas, nessa lida, permanecia durante todo o processo, irritada, principalmente quando alguém se aventurava a colocar um caneco entre a gamela e o saco que filtrava o líquido reiteradas vezes. Não que fosse avarenta, mas não lhe sobrara, com o passar do tempo, muita paciência.

No dia de sua morte, estendido na rede de varandas largas não havia somente um corpo inerte, mas o encerramento de uma vida de luta e amor; de reflexão sobre sua própria existência e poesia; de escolhas e arrependimentos; de brigas e ternura. Deixara uma existência para a qual não fora preparada, mas enfrentara.

Os que por aquela calçada passassem nunca mais veriam aquele corpo debruçado sobre o bastidor, as unhas a ajeitarem os pedacinhos de tecidos que formavam sapatos, quimonos, braços e sombrinha. As janelas nunca mais foram abertas. Não pelo luto, embora ele existisse, mas porque os moradores da casa não se expunham à rua, como ela.

O rio caudaloso, a rua de casarões antigos e a memória do que foi hoje povoam sua nova existência. Nela, cantaria o poeta de sua terra e diria que, apesar de tudo, deixou um rastro de trabalho e amor que poderá compensar a existência que, inadvertidamente, suportou. E, nesse retorno, a serra toma de conta do rio, e este das canoas. Perto dali, as orações se intensificam quando o sol se acoberta. E ela, se não reza, ouve as lamúrias dos que trabalham e quase nada ganham. Sem máquina e nem suor, daria um sorriso ao se lembrar do bastidor, da cadeira e dos tecidos a bordar. Deixou um legado, de certa forma, foi feliz.

Obs.: esse conto foi publicado, em primeira edição, por Histórias de Trabalho, antologia,  Editora da Cidade, Porto Alegre.

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