Helena Arcoverde

AUTORRETRATO

Posted in Uncategorized by helenarcoverde on 05/11/2011

Autorretrato, inverdade que a palavra assegura viés de confissão. Sob esse esconderijo é traçado quem supomos ser ou quem queremos que o outro acredite. Optaria pelo primeiro âmbito, não fosse a teia egoísta e controversa das palavras. Eu sou uma das que a alimenta. Alguém que supôs que o céu era perto. Que descobriu que os filhos não querem mais o M2000. Não se interessam mais pelas fábulas que nunca ouviam. Não há mais tempo de recuperar os deveres de casa não ensinados. Que é impossível presenteá-los com toda a coleção dos Comandos e que  os últimos, comprados, se perderam nas idas e recuos. Que os filhos não sorriem mais como antes e que não sabem mais de cor os trechos do Cavaleiro do Zodíaco.  Que precisa de mãe, mesmo tendo tido várias. O excesso dificulta a escolha. Que é racional, embora pensem o contrário. Que, criada para desprezar totalmente o amor, dele logo desistiu. Que é atraída pelo anonimato porque, opaco, nele se esconde. Que precisa acostumar os filhos a perderem-na um dia, mas não sabe como fazê-lo. Que se equivocou, se os ensinou a amá-la. Que nunca esquecerá as igrejas que povoaram sua infância.  Que se produz e permanece de chinelos. Que se constrangeria ao andar de mãos dadas. Que, quando se for, dará adeus à menina da Rua Sete de Setembro ou, quem sabe, irá definitivamente ao encontro dela e, juntas, farão um interminável memorial da inutilidade do que sobreveio à meninice.

Um conto chinês: algumas considerações

Posted in Crítica by helenarcoverde on 03/11/2011

Comédia e reflexão. Essa não é uma fórmula nova. Por trás do riso quase sempre há lições, medo, angústias e realidade. Mas é um dos vieses que marcam o filme argentino Um conto chinês,  dirigido por Sebastián Borensztein, 2011.

O espaço da narrativa parece particular, mas não é. A negação do diálogo, manchetes improváveis, o individual ocupando o vazio deixado pelo coletivo. Isso tudo em uma narrativa aparentemente despretensiosa, que em nada lembra produções em que o dinheiro como diz a sabedoria popular “nunca falta nem fica pouco”.

O final feliz pode até ser previsível, mas esse fato não resulta em desmerecimento e até poderia ser considerado mais crítico do que lugar-comum. O lugar comum não cabe em nenhum dos espaços da narrativa, nem mesmo quando a vida do homem comum, com seus percalços, hábitos e descrenças é retratada.

Esse cotidiano morno talvez não se proponha ser nada mais do que o retrato do homem comum que nada planeja, alem de voltar todos os dias para casa, mesmo que nesta ninguém o espere. Nada mais do que o cotidiano desprovido de glamour, do qual muitos procuram se afastar.

Por outro lado, a narrativa exalta, mesmo que não fosse esse o principal mote, o amor, o outro, a benevolência tão desprezada, a inutilidade da solidão. Isso tudo porque, neste filme, os temas se entrecruzam, convertem, divergem, concordam. No entanto, o herói da narrativa, Roberto, vivido por Ricardo Darin, busca a verdade não no amor, mas na solidão, no culto à imagem materna, simbolizada por imagens que, para o personagem, encarnam a mãe. A vaca se não é sagrada nem profana encarna a recondução, o refletir, a busca do lugar seguro e quente que só outra mulher, além da própria mãe, poderia oferecer. E é ela que remete o personagem ao campo, aos sentimentos de aconchego que ele perdera: é uma segunda chance de encontrar o clima acolhedor que perdera duas vezes: uma com a morte prematura da mãe, a outra quando a estante fora quebrada pelo chinês – Jun (Ignacio Huang). É a recorrência da perda.

A quebra dos objetos dedicados à mãe e que deveriam ser marcados pela inviolabilidade, pelo sagrado, são invadidos pelo estrangeiro e, neste aspecto, há um fortalecimento dos conceitos que perpassam o termo. É o prenúncio de uma nova era para o personagem. Segundo Bachelard, a verificação faz as coisas morrerem. Para ele, toda intimidade se esconde (2000, p. 100). A estante recheada de objetos, “é a primeira diferencial do objeto”. Nesse momento, diz, não há mais dialética. O exterior é riscado com um traço, tudo é novidade, tudo é surpresa, tudo é desconhecido. O exterior já nada significa. Acaba de se abrir a dimensão da intimidade, diz ele. Para alguém que se coloca na perspectiva dos valores da intimidade, essa dimensão pode ser infinita (BACHELARD, 2000, p. 98).

Essa “dialética de esquartejamento” (BACHELARD, 2000, p. 215) entre o exterior e o interior, entre o sagrado e o profano ou, quem sabe, entre o cultuamento e a profanação marcam a cena em que o chinês, ao realizar tarefas solicitadas pelo dono da casa, Roberto, quebra o móvel com tudo que representa a imagem materna. Os objetos ali postos negam a perda, estratagema que ruiu com o desmantelamento do móvel. Por que nos apegamos aos objetos, indaga Halbwachs. Por que desejamos que eles não mudem e continuem em nossa companhia? Nosso ambiente material traz ao mesmo tempo a nossa marca e a dos outros (HALBWACHS, 2006, p. 156).

Roberto é o hábito, o cotidiano que se quer irretocável, inalterado. O chinês e Mari (Muriel Santa Ana)  são os agentes da mudança, da transformação, seja esta advinda do amor ou da benevolência. Mas estas se instalam e se confrontam. Acham um terreno fértil porque o herói metódico e inflexível não deixa de ser também sujeito e este não deixa que outros façam (ou terminem) o que ele mesmo pode fazer e Roberto o faz: aceita o amor, a mudança e dá um novo rumo ao  coração acostumado à solidão.

A casa de Roberto é o espaço do imutável, da segurança que só a solidão poderia assegurar a continuidade.  Para Halbwacks, o ambiente material traz a nossa marca e a dos outros. Nossa casa, nossos móveis e a maneira como são arrumados, todo o arranjo das peças em que vivemos nos lembram nossa família e os amigos que vemos com frequência, nesse contexto. (HALBWACKS, 2006, p.157).

O ambiente inalterado da casa de Roberto começa a mudar com a chegada do hospede. Já a loja, outro espaço “afungentador” do tempo, negador da mudança, sofre reveses com o cliente intruso e meticuloso e com a presença de Mari. O entregador dos jornais também é esse agente que busca frestas para impor a transformação. Mas tudo isso não teria nenhum efeito se o herói não fosse, internamente, transformado. Cabe a ele compreender e aceitar esse processo e, assim, alterar seus espaços e a própria existência. Mas o espaço, a imagem da pintura do boi, os objetos inservíveis jogados fora, tudo isso faz crer que Bachelard tenha razão quando diz que “a casa remodela o homem” (2000, p. 63).

Enfim, essa narrativa, leva, logo nas cenas iniciais, junto consigo os expectadores para adentrar no espaço que provoca o riso para esconder que a solidão é uma enganadora e que, em nenhum momento se deve mandar de volta a felicidade. Uma quase comédia com certa dose de nostalgia ante as “novas” ordens, permeada pela critica, a reflexão e o dialogo. O macro está presente como mostra as cenas em que Roberto peregrina em busca de solução para o caso do visitante. O filme parece ter sido feito com baixo orçamento, isso alça-o a uma categoria negada a quem faz o óbvio com alto investimento. A qualidade de uma produção não está atrelada totalmente aos recursos financeiros e Um conto chinês mostrou como se fazer um bom filme sem megainvestimentos . A despretensiosidade, intencional ou não, deu certo. Pelo menos nesse caso. Os vizinhos agradecem.