Helena Arcoverde

Posted in Poesia by helenarcoverde on 31/03/2012

Solidão

Objeto ganha vida

Efêmero

Posted in Poesia by helenarcoverde on 31/03/2012

Nada definitivo

O sol entra pela porta

Muda a cor do sonho

Brinca com a solidão

Por do sol

Posted in Poesia by helenarcoverde on 31/03/2012

Pôr do sol

As lembranças são iguais

O dia se confunde com a noite

A pintura finge que se renova

AS IMPLICAÇÕES CRÍTICAS DA SÁTIRA E DA CARNAVALIZAÇÃO EM O SONHO DO TIO DE DOSTOIÉVSKI

Posted in Artigo by helenarcoverde on 29/03/2012

Obs.:Artigo já publicado anteriormente neste espaço, agora na íntegra.

Helena Arcoverde

helenarc@yahoo.com.br

RESUMO: Este artigo procura evidenciar, à luz de algumas teses de Mikhail Bakhtin em Problemas da poética de Dostoiévski, especificamente a sátira menipeia e a carnavalização, além de teses de outros teóricos, a presença de procedimentos tais como o extravagante, o satírico e o carnavalesco no romance O sonho do tio, de Dostoiévski, a fim de desvendar, através da ultrapassagem do corriqueiro, as profundezas do comportamento humano, os desvios de caráter e as concessões que os personagens fazem em nome de vantagens pessoais. A crueza da maioria desses tipos humanos realça a forma dinâmica da estrutura do romance, calcada em três planos, uma vez que a ação e as síncrises dialógicas fazem os personagens transitar entre a Terra, o Olimpo e o Inferno.

PALAVRAS-CHAVE: Dostoiévski. Bakhtin. Sátira Menipeia. Carnavalização

ABSTRACT: This article tries to put into evidence, in the light of some of Mikhail Bakhtin’s theses in  Problems of Dostoevsky’s Poetics, specifically carnivalization and the Menippean satire,  and also of theses of other theoreticians, the presence of artistic procedures such as the extravagant, the satirical and the carnivalesque in Dostoevsky’s Uncle’s Dream. The aim is to unveil, by surpassing the ordinary, the depths of human behavior, the deviations of character and the concessions that the characters make in the name of personal profit. The crudity of most of these human types, in its turn, enhances further the dynamic form of the structure of the novel, based on three levels, since the action and the dialogical sincreses make the heroes ascend into heaven, descend into the nether world or wander on earth.

KEYWORDS: Dostoevsky. Bakhtin. Menippean Satire. Carnivalization.

INTRODUÇÃO

Ao discutir a noção de construção da arte literária, J.Tynianov já afirma que este princípio não é estático, como habitualmente tratado, e que, similarmente, a entidade estática da personagem é extremamente instável e  depende inteiramente  do princípio de construção, podendo oscilar  no decorrer da obra, na maneira que lhe é prescrita, em cada caso particular, pela dinâmica geral da obra. Deste modo, não haveria “herói estático, apenas heróis dinâmicos” (TYNIANOV, 1971, p. 99-101).

O sonho do tio, de Dostoievski, expõe os ardis de Maria Alieksándrovna para assegurar o futuro de Zina, sua filha, casando-a com o decrépito Príncipe K., sob os olhares e intrigas dos moradores da pequena Mordássov. O Príncipe K. transita do extravagante ao ingênuo, do ridículo ao generoso, enquanto Maria Alieksándrovna mostra-se uma heroína intensa, com uma performance dinâmica, pois ela transita da Terra aos Céus e ao Inferno, em uma aventura que beira ora ao cômico, ora ao dramático. Similarmente, a crueza dos tipos humanos construídos por Dostoiévski, marcados, nesta novela, pelo extravagante e satírico, garantem-lhe uma forma dinâmica e evidenciam a realidade à luz do realismo, crítica social e materialismo, concepções marcantes no contexto vivenciado pelo autor russo. Esses personagens, sob a influência do carnavalesco, também se mantêm no limiar entre a realidade e o impensável, desnudando-se diante de nossos olhos através de seus conflitos e diálogos.

Por essa razão, este trabalho visa investigar, usando as teses bakhtinianas sobre a sátira menipeia e a carnavalização da literatura, de que modo os procedimentos artísticos usados por Dostoiévski desvendam, ao ultrapassar o corriqueiro, as profundezas do comportamento humano, os desvios de caráter e as concessões que os personagens fazem em nome de vantagens pessoais.

A SÁTIRA MENIPEIA EM O SONHO DO TIO:

Como argumenta Bakhtin, a sátira menipeia tornou-se um dos principais veículos e portadores da cosmovisão carnavalesca na literatura até nossos dias (BAKHTIN, 1997, p. 113) e suas características, como gênero carnavalizado, encontram-se concretizadas em muitas obras de Dostoiévski. Em O  sonho do tio, especificamente, o enredo projeta diversas características da menipeia, quais sejam: situações extraordinárias para provocar a palavra e a verdade, o herói em busca da verdade, elemento cômico, estrutura triplanar: terra, olimpo, inferno; diálogos no limiar, cenas de escândalos, comportamento excêntrico, discursos inoportunos, publicística atualizada. Todas essas características estão, como salienta Bakhtin, profundamente integradas numa unidade orgânica, mesmo que sejam analisadas separadamente neste  trabalho.

Situações extraordinárias para provocar a palavra e a verdade

Em O sonho do tio foi criada uma trama de forma a comprovar a mesquinhez de moradores de pequenas cidades como Mordássov, capazes de promover ações danosas ao outro por meio de situações embaraçosas e distantes da ética e do bom senso. A concepção filosófica e científica do século XIX era voltada à comprovação da sordidez humana, do lado sombrio e oculto do homem. As artimanhas da heroína Maria Alieksándrovna, a traição de Páviel Alieksándrovich e de Vássia, as futricas das amigas de Maria Alieksándrovna representam a mesquinhez e a ausência de propósitos nobres, tudo isso sob a égide da sátira e da crítica social. Mesmo diante da autonomia que Dostoiévski costumava proporcionar aos seus personagens, o pano de fundo desta novela revela uma série de situações que contribuem para comprovar a verdade: o homem pode ser sórdido e mesquinho, guiado pela busca do poder e da riqueza. Isso ficava mais evidente em uma trama em que o cenário é uma pequena cidade onde todos os moradores, independente da classe social, se conhecem. Enfim, o patológico que impregna o homem surge, reiteradas vezes: “Não vou descrever todas essas senhoras. Direi apenas que nos seus olhos brilhavam centelhas de uma malícia especial. Todos os rostos mostravam expectação e uma impaciência verdadeiramente doentia” (DOSTOIÉVSKI, 1993, p. 958).

O herói em busca da verdade

Em O  sonho do tio existem várias verdades: a de Maria Alieksándrovna, dominar a cidade com sua capacidade de conhecer a verdade do outro e esconder a sua própria; a do Príncipe K., continuar sendo sedutor, admirado tanto pelos seus dotes físicos quanto intelectuais; a de Zina, o amor e a decência.

Maria Alieksándrovna é a heroína em busca da verdade, em busca do poder diante de sua cidade, do prestígio junto à alta sociedade, a procura de aumentar suas “cento e vinte cabeças de alma” à custa de um casamento vantajoso para sua única filha, Zina, pois com relação ao marido já perdera as esperanças de conseguir alguma vantagem. Maria Alieksándrovna detém conhecimentos sobre a verdade dos moradores de sua cidade, “conhece pormenores tão importantes e tão escandalosos acerca de mais de uma pessoa respeitável de Mordássov, que, se alguma vez os contasse, demonstrando, além disso, a sua verdade, como só ela sabe fazê-lo, certamente repetir-se-ia em Mordássov o terremoto de Lisboa.” (DOSTOIÉVSKI, 1993, p. 877).

Essa busca é intensificada, uma vez que os seus objetivos iniciais foram modificados ao vislumbrar a possibilidade de casar a filha com o Príncipe, o que faria com que o personagem, através da filha, tivesse acesso a uma outra classe social, a nobreza e a uma herança muito acima do padrão a que estava habituada.

Estrutura triplanar: terra, olimpo, inferno, diálogos no limiar

Apesar dos dissabores com a demissão do marido e com os falatórios sobre sua única filha, a situação de Maria Alieksándrovna  era estável, acostumada a ser a senhora mais importante de Mordássov, mesmo diante das vicissitudes para se manter neste posto. Essa era sua realidade e representa, na estrutura triplanar, a terra. O olimpo, em O sonho do tio, está representado pela situação almejada pela personagem: um casamento com um nobre e uma herança que possibilitariam à família e, em especial, a ela, ascensão social e um mundo de viagens e luxos. O inferno, evidentemente, foi o desmoronamento desse sonho e a desmoralização vinda desse episódio. A descoberta de suas artimanhas para casar a filha e fazê-la herdar a fortuna do nobre, o seu destronamento.

Cenas de escândalos, comportamento excêntrico, discursos inoportunos

Esse aspecto da sátira menipeia é um dos mais intensos em O sonho do tio. Ao “satirizar a sociedade mesquinha de uma pequena cidade provinciana, preocupada apenas com a intriga, a bisbilhotice e a maledicência invejosa”, Dostoiévski utiliza, entre outros procedimentos, os conclaves, ocasião em são expostos, em forma de escândalos e conflitos, a  fragilidade das relações entre os personagens. Para Grossman, ao conduzir a cena do escândalo ao apogeu, Dostoiévski desvia abruptamente a ação, da ocorrência vulgar, para o patético e o heróico (GROSSMAN, 1967, p. 38).

O trecho a seguir dá início ao conflito ocorrido na casa de Maria Alieksándrovna, onde ocorre o conclave. Seguem-se acusações e as situações de conflito e escândalo são extremas: “As senhoras subiam as escadas e chilreavam como andorinhas. Maria Alieksándrovna não queria acreditar naquilo que os seus olhos viam e os seus ouvidos ouviam. – Tanta gente aqui! – disse. – isto parece uma conspiração! Vamos a ver o que isto vai dar! Embora, a mim… não me metam medo estas palermas… Esperem que já vão ver” (DOSTOIÉVSKI, 1993, p. 949).

A excentricidade e ingenuidade marcam a imagem do príncipe. Manipulado pelos que dele se aproximavam, esse personagem é alçado ao ridículo tanto pela sua descrição física quanto pelo alheamento que demonstra com relação à realidade.

Já os discursos inoportunos perpassam quase toda a novela e, em sua maioria, ficam por conta de Maria Alieksándrovna e de suas companheiras de mexericos. Uma das interferências mais inadequadas fica a cargo de uma das amigas de Maria Alieksándrovna, Sófia Pietróvna, a Coronela, que, em mais de uma ocasião, extrapola as normas e convenções sociais. Ao invadir a residência de Maria Alieksándrovna sem ser convidada, como já era hábito, a personagem faz uma declaração inapropriada para aquele e qualquer outro momento: – Sófia Pietróvna! – exclamou Maria Alieksándrovna relativamente tranquila, apesar de estar como brasa: – ouça – Já sei, já sei, chama os seus criados e manda-me pôr na rua! Não é? Mas não se incomode, eu vou-me embora sem ser preciso isso. Adeus e case sua filha com quem quiser; e a senhora, Natália Dimítrievna, não tem nada que rir-se de mim, vá para o diabo mais o seu chocolate. Eu não fui convidada para esta casa, mas também não dancei o kasatchok para o distrair! Mas afinal por que se ri, pode saber-se, Anna Nikoláievna? Pois olhe, fique sabendo que Suchílov acaba de quebrar uma perna e tiveram que levá-lo para casa. E a senhora, Felissata Mikháilovna, tome cuidado, se a sua criada Matriona, que anda descalça, coitada, não se lembrar de levar a vaca todas as manhãs para o campo, de maneira que não se ponha a mugir todos os dias junto das janelas, qualquer dia parto-lhe uma perna. Bem… fique com Deus Maria Alieksándrovna e passe muito bem! (DOSTOIEVSKI, 1993, p. 961-962)

Em outra passagem, ao descrever a voracidade com que as inimigas de Maria Alieksándrovna ansiavam pelos escândalos, o narrador diz: “Algumas tinham ido ali com o propósito deliberado de testemunhar um escândalo, daqueles que se tornam famosos, e não perdoariam a si próprias se perdessem semelhante oportunidade”.

A maior parte dos personagens, não somente a Coronela, fazem repetidas declarações inadequadas, ora em tom de elogio, ora em tom de ironia e maledicência. Estas falas se contrapõem às oportunas interferências de Zina, que, com propriedade e postura digna, defende suas ideias sob a égide da ética e da honestidade, embora, por mais de uma vez a personagem faça concessão aos propósitos da mãe.Os discursos e declarações inoportunos estão presentes de forma intensa. A voracidade com que as personagens buscam seus objetivos contribui para que esse recurso seja vasto.

Elemento cômico

O sonho do tio é uma novela marcada pela comicidade. As personagens, os diálogos e a própria interferência do narrador remetem ao cômico, como ocorre no trecho: “ A meu ver, a colocação que desde o princípio estaria mais indicada para ele teria sido a horta, para desempenhar, e de certeza que o desempenharia na perfeição, o ofício de espantalho” (DOSTOIÉVSKI, 1993, p. 879).

O cômico também está presente nos diálogos entre a heroína Maria Alieksándrovna e o seu marido, Alfanássi Matviéievitch, sobre quem exerce grande domínio. Na tentativa de fazer o marido participar, conforme planejara, de suas estratégias, Maria Alieksándrovna trava com ele um diálogo cômico para o leitor, mas trágico para Alfanássi, incapaz de compreender os estratagemas da esposa: – Quê? Mas tu fazes caracois, homem! Tu usas caracois postiços? Hão de ficar muito bem nessa cabeça de martelo! (…) – Mãe…zinha! – balbuciou por fim o sobressaltado marido, sem se levantar do lugar e dirigindo um olhar implorativo à severa esposa – Mãezinha!- Quantas vezes já te disse, quantas vezes tentei fazer entrar nessa cabeça de burro que não sou tua mãe? Eu, tua mãe, idiota? (DOSTOIEVSKI, 1993, p. 945) – Mas… se me perguntarem alguma coisa?- Não respondes, faz de conta que não ouviste.- Mas, isso não parecerá mal, Maria Alieksándrovna?- Bem, então dizes um monossílabo, como por exemplo hum! Ou qualquer coisa do gênero, de maneira que dês a entender que és um homem esperto e pensas duas vezes antes de dizer uma coisa.- Hum!- Compreendes? Vens comigo e eu digo que tu, assim que soubeste da visita do príncipe, te apressaste, muito lisonjeado, a vir à cidade com a intenção de apresentar-lhe os teus respeitos e de convidá-lo para as nossas terras. Compreendes?- Hum! (p. 948)

Publicística atualizada (literatura político-social)

Com linguagem mordaz e crítica, O sonho do tio apresenta preocupação com as questões sócio-políticas da época em que viveu Dostoiévski. A narração possui um tom muito aproximado das colunas de jornais da época, onde a informação se misturava às opiniões pessoais (no caso, o narrador) do jornalista, com uma linguagem que oscilava entre o irônico e a mordacidade. Mesmo tendo se diferenciado dos demais, o autor russo manteve-se atrelado às concepções literárias e filosóficas do seu tempo. Em O sonho do tio perpassa também a questão da denúncia social, que no século XIX era uma questão urgente e instigante.

Quando o Príncipe chama os seus criados de imbecis, termo que acha adequado à criadagem, ou quando Maria Alieksándrovna os denomina de malandros (p. 896) constitui-se uma forma de o autor chamar a atenção, denunciar as desigualdades existentes na Rússia, uma crítica aos costumes e valores da classe dominante. É como se o autor criticasse a naturalidade com que essa classe vê e pratica as injustiças sociais. São situações que expõem os pressupostos e as lutas sociais marcantes no século XIX.

Em outra passagem, ao aludir a sua participação na maçonaria, o Príncipe fala sobre a alforria de Sidor, e trava o seguinte diálogo com o sobrinho: – Mas, tio, se fizer essa viagem ao estrangeiro, pensa emancipar todos os seus camponeses? – exclamou Mosliakov rindo-se às gargalhadas.- É claro! Adivinhastes o meu pen…sa…mento! respondeu imediatamente o príncipe. –e É essa a minha intenção. Transformá-los, de servos, em trabalhadores livres.- Mas, por amor de Deus, príncipe, olhe que lhe fogem todos quando fizer isso, e depois, quem é que paga as rendas? – objetou Felissata Mikháilovna . (DOSTOIÉVSKI, 1993, p. 964)

A carnavalização em O sonho do tio: além do plausível

A cosmovisão carnavalesca, princípio consolidador de todos os elementos da menipeia, está presente em O sonho do tio em vários âmbitos: na construção das personagens, nos costumes dos moradores, na forma como se dão os conflitos, nas relações limites estabelecidas entre eles e suas atuações. Além das imagens do riso e do comportamento extravagente, revela-se, principalmente, através da coroação bufa e do destronamento de Maria Alieksándrovna, levando ao desenlace.

A carnavalização da literatura, diz Bakhtin, tornou possível a criação da estrutura aberta do grande diálogo, permitiu transpor a interação social entre os homens para a esfera superior do espírito e do intelecto, que sempre era predominantemente esfera da consciência monológica única, do espírito uno e indivisível que se desenvolve em si mesmo. Por essa razão, o homem nunca encontrará sua plenitude apenas em si mesmo (BAKHTIN, 1997, p. 180).

A carnavalização foi um dos recursos que possibilitou, a Dostoievski, ultrapassar os limites da criação literária na Rússia de sua época. Com esse gênero e outras marcas, tais como a capacidade de transitar entre os gêneros (lírico, dramático, satírico, entre outros) e evitando a terminalidade de diálogos, ideias, construção de personagens, enfim, da sua própria criação literária, Dostoiévski imprime a sua criação um caráter de continuidade, de processo, “uma aproximação dos limites”. É como se houvesse não um fio condutor que norteasse sua construção, porém que garantisse a autonomia de todo o seu processo criador.

A carnavalização também possibilitou a Dostoiévski evidenciar o caráter e comportamento das pessoas que não poderiam revelar-se no curso normal de suas vidas (BAKHTIN, 1997, p. 165). A extravagância, a loucura, a ganância de Maria Alieksándrovna, a rede de mexericos da cidade, o ato de ciúme de Vássio que o levou a divulgar uma carta de amor entre ele e Zina, provocando escândalo que desonra a namorada, a sucessão de planos mirabolantes de Maria Alieksándrovna, são processos intensos e extremos.

Todos eles estão no limiar da sanidade, do bom senso, do aceitável. Não apenas os homens e seus atos, como também as ideias abandonaram os seus ninhos hierárquicos fechados e passaram a chocar-se no contato familiar do diálogo absoluto. (BAKHTIN, 1997, p. 169)

Tudo exige sucessão e renascimento. Tudo é mostrado no momento da transição não concluída. (BAKHTIN, 1997, p. 169) Para Bakhtin, ao tornar relativo todo o exteriormente estável, constituído e acabado, a carnavalização, com sua ênfase nas sucessões e na renovação, permitiu a Dostoiévski penetrar nas camadas profundas do homem e das relações humanas (1997, p. 168).

A carnavalização, garante Bakhtin, não é um esquema externo e estático que se sobrepõe a um conteúdo acabado, mas uma forma insolitamente flexível de visão artística, uma espécie de princípio heurístico que permite descobrir o novo e o inédito (1997, p. 168).

O extravagante

O extravagante marca boa parte dos personagens da novela O  sonho do tio: a atuação de Maria Alieksándrovna, com as tentativas de manter o prestígio na cidade, usando ardis para que todos dela dependessem, enquanto o Príncipe K., ausente da realidade, beira ao ridículo. Suas descrições são marcadas pela extravagância, como se pode observar nos trechos seguintes: A um primeiro e distraído olhar, ninguém tomaria o príncipe por um homem de idade, muito menos por um velho. Só depois de o observar mais de perto e atentamente é que se repara que o infeliz é um cadáver montado sobre molas. Deitaram mão de todos os artifícios para disfarçar de adolescente essa múmia. A peruca, de uma naturalidade assombrosa; as suíças, o bigode e as moscas reluzem com um negror magnífico e cobrem-lhe metade do rosto. A outra metade usa-a artisticamente empoada e não deixa ver a menor ruga. (DOSTOIÉVSKI, 1993, p. 893)

Segundo Bakhtin, a ideia artística de Dostoiévski não concebia nenhuma significação humana sem elementos de certa extravagância. Em vários de seus personagens, há sempre algo de ridículo, em diferentes graus de intensidade (BAKHTIN, 1997, p. 151).

O riso

Todas as formas do riso ritual estavam relacionadas com a morte e o renascimento, com o ato de produzir, com os símbolos da força produtiva. Nele se fundiam a ridicularização e o júbilo (BAKHTIN, 1997, p. 127). Em O sonho do tio, o riso é voltado para a ridicularização: a oposição da sociedade a Maria Alieksándrovna; as respostas em geral são marcadas pelo escárnio e pelo riso. Quando a heroína foi desmascarada, sucedeu-se a este fato o riso e consequente humilhação. Da mesma forma, quando a Coronela invadiu o conclave na casa de Maria Alieksándrovna e fez um discurso inoportuno direcionado a quase todos os presentes, a resposta também foi o riso.

Quando o riso não se manifesta de forma explícita, faz-se presente de forma sutil: durante os diálogos envolvendo o Príncipe e Mosliakov, por exemplo, ocasião em que o ingênuo tio confessa todos os mecanismos usados para conservar-se mais jovem, tais como suíças pintadas e bigode postiço:- Pois olha, é para que saibas, é pos…tiço!- exclamou o príncipe, pousando sobre Mosliakov um olhar de triunfo.- Mas será possível? Ninguém diria! E as suíças? Confesse, tio, que as suíças pinta-as.-Pinto-as! Sim, pinto-as! Também são completamento … pos…tiças!-Isso não pode ser, tio! Desculpe, mas não acredito. O senhor está brincando comigo”. (DOSTOIÉVSKI, 1993, p.952)

A coroação e o destronamento do rei

O destronamento do rei, diz Bakhtin, se opõe ao coroamento. É como se o rito de destronamento encerrasse a coroação, da qual é inseparável. O Carnaval, diz o autor, triunfa sobre a mudança. Nada absolutiza, apenas proclama a alegre relatividade de tudo (BAKHTIN, 1997, p. 125).

Maria Alieksándrovna diante dos conclaves e conflitos inevitáveis dá mostras de suas reais intenções. O herói é desmascarado, é destronado. Maria Alieksándrovna, com suas estratégias para manter suas conquistas de poder diante da cidade, é afastada da sua posição diante da comunidade e destronada outra vez do-quase posto de mãe da mulher do Príncipe K.

Suas opositoras e inimigas declaradas na cidade se vangloriam diante da derrocada da heroína, que decaíra do posto de senhora mais importante da cidade. Caiu em ruína, foi ridicularizada, sob risos e humilhações: As senhoras retiraram-se no meio duma grande algazarra e gritaria. Maria Alieksándrovna acabou por ficar sozinha entre os escombros da sua glória. Todo o seu poder, todo o seu prestígio, toda a sua importância.desabaram numa noite. Compreendia que nunca mais poderia elevar-se de novo a tal altura. O seu despótico domínio de tantos anos na boa sociedade de Mordássov ruíra definitivamente. (DOSTOIÉVSKI, 1993, p. 976)

O Príncipe K, tratado em quase todo o decorrer da novela com reverência e admiração, bajulado por quantos conseguiam se aproximar dele, também foi destronado, em cena que demonstra o cruel, o esmagamento do perfil do Príncipe, sua verdade escondida. Para Bakhtin (1997, p. 164), esse destronamento do rei carnavalesco, que ele denominou de noivo carnavalesco, “é coerente com um dilaceramento, uma típica separação carnavalesca sacrificatória”: Se eu sou um barril, você é aleijado…-Quem, eu aleijado?- Isso, mesmo, aleijado, e ainda por cima banguelo, é assim que você é!-E ainda zarolho! Gritou Maria Alieksándrovna.-Tem espartilho em vez de Costelas –acrescentou Natália Dmítrieva.-Tem a cara sobre molas!-Não tem cabelo próprio!-Bigodes de imbecil, postiços – completou Maria Alieksándrovna.-Deixe-me pelo menos o nariz, Maria Stepânovna, é verdadeiro – gritou o príncipe, pasmado com franquezas tão inesperadas… -Meu Deus! – dizia o coitado do príncipe. – Leve-me para algum lugar, meu amigo, senão me estraçalham!.(DOSTOIÉVSKI, 1997, p.164)

Assim, o príncipe foi despojado de seu prestígio de nobre, de pretenso noivo, de amigo de Maria Alieksándrovna. Também foi ridicularizado e ficou à mercê do riso, do desnudamento de seus segredos mais íntimos. A ruptura no relacionamento com as senhoras da cidade, em especial com Maria Alieksándrovna, o destronou de sua coroação anterior, passando a ser tratado como uma pessoa qualquer, sem a elegância e reverência costumeiras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de retratar a realidade de seu tempo, as sórdidas notícias de páginas policiais, os vultos que transitavam na alta sociedade russa, Dostoiévski procurava, através do carnavalesco, do extravagante, ultrapassar o corriqueiro, evidenciando, como ocorre em O  sonho do tio, as profundezas do comportamento humano, os desvios de caráter, as concessões feitas em nome de vantagens pessoais, o lado obscuro, satírico, lírico ou dramático que o ser humano possui e que, normalmente, se esconde debaixo do superficial. Os personagens postos à prova diante de tramas e conflitos desnudam seus propósitos, o seu “eu” íntimo. Dostoiévski, em O  sonho do tio, constrói personagens excêntricos como o Príncipe K, Maria Alieksándrovna e a Coronela; fracassados e frágeis de caráter, como Páviel Alieksándrovitch; firmes de caráter, como Zana, enriquecendo-os ao imporlhes os fios norteadores do carnavalesco. As particularidades da Sátira Menipeia estão presentes, de forma significante, em O sonho do tio, imprimindo um caráter quase lúdico a uma novela, tida pelos críticos como leve em comparação ao restante da obra de Dostoiévski, apesar das concepções filosóficas, científicas e literárias e, em especial, da denúncia social que desenvolve.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M.  Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

DOSTOIÉVISKI, Fiódor M.  Obras completas. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar Editora, 1993.

GROSSMAN, L. Dostoiévski artista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

TYNIANOV, J. Teoria da literatura: formalistas russos.  Porto Alegre: Globo, 1971.

Nota: Publicado originalmente em Scripta Alumni, sob a orientação da doutora Sigrid  Renaux

PEDRO NAVA E O TEMPO PERDIDO EM BALÃO CATIVO

Posted in Artigo by helenarcoverde on 29/03/2012

Texto 2009, já havia sido publicado, resumidamente, neste espaço, porém disponibilizo agora na íntegra.

Helena Arcoverde

helenarcv@yahoo.com.br

RESUMO: Este trabalho aborda aspectos relevantes da obra Balão cativo de Pedro Nava e sua inserção na modalidade memórias, à luz das concepções de Maurice Halbwachs sobre memória coletiva. A história vivida, a morte e a solidão como temas, e a mordacidade do estilo evidenciam o tratamento dado pelo autor à reconstrução do passado, deformado pelo tempo, pelo subjetivo, pelas várias visões e parâmetros a que são submetidos tanto o escritor memorialista como suas fontes. Apesar desses confrontos e deformações, Balão cativo devolve ao leitor a tradição e os costumes da época em que o menino Nava viveu, as escolhas feitas em seu nome e o seu inconformismo diante do que não pode mudar no passado.

PALAVRAS-CHAVE: Memórias. Reconstrução do passado. Pedro Nava. Balão Cativo.

ABSTRACT: This paper examines relevant issues in Pedro Nava’s memoirs Balão cativo that make it an example of the genre, using as support Maurice Halbwach’s conceptions of collective memory. The narrative as lived history, loneliness and death as the primary themes, and the acerbity of the style put into relief the approach used by the author in his reconstruction of the past, although transformed by the time elapsed, by subjective considerations, and by all the different views and values to which both the writer of memoirs and his sources are subject. In spite of confrontations and changes, Balão cativo leads the reader back to the traditions and uses at the time of Nava’s childhood, the choices that were made for him, and his disgust at what cannot be changed in the past.

KEYWORDS: Memoir. Reconstruction of the past. Pedro Nava. Balão cativo.

INTRODUÇÃO

“Para quem escreve memórias, onde acaba a lembrança, onde começa a ficção. Talvez sejam inseparáveis… Só há dignidade na recriação. O resto é relatório.” (NAVA, 2000, p. 288).

Um menino que não quis crescer antes de ser feliz. Essa parece ser uma das tônicas de Balão Cativo, um grito em busca de um passado perdido. Uma revolta contida e acalmada pelo tempo. Onde começa a ficção, onde terminam as memórias? Que tênue limite impõe a realidade nesse vaivém de relatos de uma vida inteira? Que entrelaçamentos se impõem entre o subjetivo relatado por Nava e os confrontos e memórias do coletivo? Que Nava emergiu em meio a uma infância quase pedida? Quem ressurgiu desses escombros? A solidão do menino ficou no homem. Balão Cativo é esse grito de inconformismo que o tempo amainou, mas não destruiu. É o ressuscitar de vultos eternizados por Nava, alçados a um patamar onde a morte não alcança. Com eles, Nava sobrevive, não graças ao seu passado, mas ao tratamento artístico e literário dado às suas memórias, à avidez com que vivifica uma plêiade de cenários e vultos deixados para trás pelo tempo. Nava os trouxe à vida, resgatou-os, alçando-os ao mundo literário, de onde, pelo valor literário de sua obra, permanecerão vivos também na memória de outros.

As figuras mortas deixam a sua condição de realidade e saltam para a configuração de personagens. De algum modo, rememorar está para o documento assim como dar vida nova aos mortos está para a ficção, no sentido de lembrança transfigurada pela criação artística. Combinados, os dois processos explicam a arte do escritor das Memórias. (AGUIAR, 1998, p. 18).  Nava saiu do quase anonimato para ser eterno junto com seus mortos. Partiu da poesia para a prosa, da vida para a morte, do silêncio para a eloquência, da ciência para a arte.

Descrição minuciosa, veia histórica precisa, ironia, obsessão pela morte. Estes são alguns dos aspectos marcantes em Balão cativo. Com uma linguagem irônica, que incita à reflexão, por meio dos relatos construídos, o autor faz um apanhado do comportamento da sociedade de seu tempo, fomentando a análise das relações interpessoais, familiares e sociais. Nava e suas memórias remetem o leitor a um passeio pelo seu tempo e uma crítica contundente a várias questões, entre elas, as sociais. Enfim, prende o leitor pela irreverência e crueza com que expõe o contexto em que viveu.

NAVA E OS DESAFIOS DO MEMORIALISTA

Memória escrita é narração, afirma Aguiar. A palavra vem do verbo latino narrare, expor, contar, relatar e tem proximidade com o  que os gregos antigos denominavam de  épikos, poema longo que conta uma história e serve para ser recitado (1998, p.25).O memorialismo exige a presença de um narrador, que apresenta os acontecimentos e os personagens neles envolvidos, e pressupõe sempre dois tempos: o presente em que se narra e o passado em que ocorrem os fatos narrados.

A busca do passado, porém, nunca o reencontra de modo inteiriço, porque todo ato de recordar transfigura as coisas vividas. Ao fazer um paralelo com o épico, Aguiar afirma que o passado se recontrói de forma não linear, com idas e voltas repentinas, com superposições de planos temporais, com digressões e análises. E finaliza: o que volta não é o passado propriamente dito, mas suas imagens gravadas na memória e ativadas por ela em um determinado presente (1998, p. 25).

A casa em Juiz de Fora, dominada por Inhá Luiza, a avó tirânica; a subserviência dos agregados e da própria mãe; os ressentimentos; o cheiro da comida e outras memórias sensoriais seguem Nava mundo afora. A visão do menino é complementada pelos depoimentos colhidos, pelos documentos e cadernos de anotações coletados ao longo da vida. O subjetivo, as mágoas, a ânsia do resgate se misturam às lembranças da infância, aos passeios, às mudanças de cidade quando o gerenciamento de sua vida era atrelado aos avós.

Balão cativo é um grito ora de saudade, ora de mágoa. Soa como um pedido de socorro de quem é perseguido pelo passado. A linguagem mordaz, direta, marcada pela quase denúncia, busca, quem sabe, recompor uma infância perdida, ecos de um passado que, durante décadas, teimou em permanecer aparentemente intato, solidificado na memória e nos velhos cadernos de anotações da avó despótica. nhá Luiza deixou em Nava, além dos ressentimentos (a rejeição, a preferência por outros netos, as joias negadas à mãe em função da viuvez, a tirania e crueldade no tratamento dos agregados) e observações comprometedoras, o hábito de registrar as informações do presente. Parte destas seria usada, décadas depois, pelo memorialista nessa volta sem vencedores. Em que pese tudo isso, Balão cativo resgata parte do passado; a outra está comprometida, envolvida em uma crosta de subjetividade e devaneio, mágoa e comprometimento em função da distância, do tempo e da própria memória, que volta sempre transfigurada.

As memórias de Nava ficaram durante décadas esperando ser compartilhadas. Porém certamente foram decisivas na sua formação, no seu estilo e em suas escolhas. Para Samuel Beckett, “não há como fugir das horas e dos dias. Nem de manhã, nem de ontem. Não há como fugir de ontem porque ontem nos deformou, ou foi por nós deformado (BECKETT, 2003, p.11).No entanto, a reconstituição do passado só se pode dar com o auxilio dos dados do presente. O reaparecimento do que se julgava atirado nos “abismos do esquecimento” deve-se à associação de ideias, ou seja, à capacidade analógica. Nesse processo está a chave do texto (AGUIAR, 1998, p.21).

Nava concentra-se muito mais na descrição minuciosa do que ocorre ao seu redor do que em si próprio, na sua individualidade. Aspectos significantes do coletivo são evidenciados, deixando ao leitor perceber caracteres da sociedade do seu tempo, com seus comportamentos e modo de vida. Embora não lhe seja cobrado nenhuma exatidão, ela existe e é marcada por datas, fatos e, certamente, documentos e arquivos. Segundo Aguiar, Nava recolheu durante décadas documentos de família, fotografias, cartas, diários, bilhetes, frases soltas, citações, fichários, cadernos de anotações, construindo, assim, material volumoso, embora fragmentado, como base concreta para suas memórias (1998, p. 17).

Para Maurice Halbwachs, as lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e de objetos que somente nós vimos. Para ele, sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem (2006, p. 30). Na retrospectiva de sua vida, o autor procura reencontrar a si próprio, o seu eu perdido no tempo e na distância, mas o faz como membro de um grupo social. Em Balão cativo, Nava evidencia uma sequência de acontecimentos  que povoaram não somente o seu mundo, mas o de sua família  e das próprias cidades em que viveu.

Ainda citando Halbwachs, esquecer um período de vida é perder contato com os que então nos rodeavam (2006, p. 37). Nava, embora distante do local em que morou durante a infância, mantinha aceso o passado através de levantamentos, documentos e relatos. Evidente que essa edição é subjetiva e marcada pelo que o autor, sob a égide do subjetivo, eleja como marcante.

As memórias de Nava são povoadas pelo outro, possuem uma forte ligação com os cenários, pessoas e fatos que o rodearam naquele corte temporal. Inhá Luisa, sua avó, é parte significativa dessas lembranças. Estas remetem ao autoritarismo, à rejeição, ao desamor e às injustiças praticas contra as criadas da casa. Inhá Luisa, sua condescendência com os desmandos do neto preferido, o domínio sobre as filhas são temas recorrentes em Nava, na reconstituição da sua própria história e de sua identidade marcada pela perda.

Nava volta ao passado, à casa da avó em Juiz de Fora, a Belo Horizonte, ao Rio, à escola, como forma de resgatar, de compor suas memórias. O outro reconduz Nava a um passeio cheio de saudade e angústia, a uma busca que não cessaria até a sua morte, já que o autor deixou sua “última” obra inacabada.

NOS MOLDES DE PROUST

O eu-narrador evoca o passado, e com ele, os ressentimentos, os cheiros, o gosto da comida mineira e o mundo de injustiças fomentado por Inhá Luiza. Ao transitar em uma das vertentes da literatura confessional, as memórias, Nava, admirador confesso de Proust, parece também buscar seu tempo perdido.

Nava, como Proust, usa os sentidos para reconstruir o passado. Faz, porém, amplo uso desse recurso, registrando mais uma vez os comportamentos e costumes da época e região em que nasceu, como se pode observar em algumas dessas passagens: “As negrinhas. Ficou delas em mim, nos meus irmãos e nos meus primos o cheiro das roupas, das reentrâncias e socavões dos corpos de menina-e-moça adolescendo de todas as cores”; (…) “Pelos ouvidos. Pelo olfato. Pelo tato. Pelo gosto da comida simples e clássica da Lúcia, da Justina, da Rosa, da Deolinda. A cozinha do 179 era negra e encardida como convinha a uma boa cozinha de Minas. Tinha um teto alto….; as mantas de pele de porco escorrendo gordura; e as espirais das cascas de laranja que ali ficavam defumando e secando. O fogão, como ser vivo, tinha um cheiro diferente em cada parte; dominando todos esses, o olor peculiar da comida nossa de cada dia. (NAVA, 2000, p.8; 10)

Em mais de uma ocasião, em  Balão cativo, Nava faz alusão a  Proust. Em uma delas, diz: “também na rua, em frente de suas casas, Marcel Proust põe na boca do narrador que, no seu tempo, o diabolô já era tão desusado que, no futuro e diante de fotografia de moça que trouxesse um nas mãos, os comentadores de costumes poderiam fazer longas exegeses sobre a natureza daquele instrumento” (2000, p. 16). Para descrever os chapéus leves de moças e senhoras compara-os aos do “retrato da Princesa de Radziwill ou o da Montegnard ou o da Caraman-Chimay nas fotografias proustianas” (2000, p. 41). Cita, ainda, Marcel Proust, em Le Temps Retrouvé (p. 239) e faz referências à personagem do romance, Albertine (p.220).

Segundo Aguiar,  Proust foi mestre na transposição dessas duas naturezas da memória (memória voluntária e involuntária) para a obra literária. À memória voluntária ligam-se a cronologia dos acontecimentos, o fato, o documento e a história; à involuntária liga-se a simultaneidade das lembranças, que podem justapor-se umas às outras, além da recriação do fato e da ficção (AGUIAR, 1998, p. 21).

A memória involuntária, para Samuel Beckett, é explosiva, uma deflagração total, imediata e deliciosa. Restaura não somente o objeto passado, mas também o Lázaro fascinado ou torturado por ele…“ subtrai o útil, o oportuno, o acidental, porque em sua chama consumiu o Hábito e seus labores e em seu fulgor revela o que a falsa realidade da experiência não pode e jamais poderá revelar – o real”. “A memória involuntária é um mágico rebelde e não se deixa importunar. Escolhe o seu tempo e lugar para a operação do milagre. Não sei quantas vezes esse milagre reaparece em Proust (2003, p. 32; 33). A memória voluntária é uniforme, diz Beckett, não é memória, “mas simples consulta ao índice remissivo do Velho Testamento do indivíduo”. Essa memória é confiável em se tratando de reprodução das impressões do passado formadas por ação consciente da inteligência. Sua ação é comparada por  Proust à de virar as páginas de um álbum fotográfico (2003, p. 32).

Enquanto em Proust “não há certo e errado” (BECKETT, 2003, p. 70), Nava põe em relevo as questões morais e éticas: Inhá Luisa, o seu neto predileto, algumas das tias encarnam as atitudes antiéticas, alheias aos pressupostos da justiça social; já outras personagens, como alguns agregados, os parentes paternos, sua mãe (apesar de frágil e dependente da família materna) representam a ética, a solidariedade e a justiça. Em Balão cativo a questão do certo e do errado, do bem e do mal, da justiça e da injustiça está bem definida e marca presença em todo o decorrer do relato.

NAVA E A MEMÓRIA HISTÓRICA

Halbwacks aponta uma distinção e um entrelaçamento entre memória individual e histórica. A primeira, diz ele, receberia ajuda da segunda. Esta, mais ampla, só representaria para nós o passado sob uma forma resumida e esquemática, ao passo que a memória de nossa vida apresentaria do passado um panorama bem mais contínuo e denso. Nomes próprios, datas, fórmulas que resumem uma longa seqüência de detalhes, diz Halbwachs, “a história parece um cemitério em que o espaço é medido e onde cada instante é preciso encontrar lugar para novas sepulturas” (2006, p. 73-74).

A memória, diz Halbwachs, não se apóia na história estudada, mas sim na história vivida. Por história, “devemos entender não uma sucessão cronológica de eventos e datas, mas tudo o que faz com que um período se distinga dos outros, do qual os livros e as narrativas em geral nos apresentam apenas um quadro muito esquemático e incompleto” (2006, p.79).Nava passeia por detalhes da história vivida. Cenários tanto de Juiz de Fora quanto de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e até de outros países. No Rio de Janeiro, chega a fazer alusão à história da criação dos cemitérios: “quase todos foram abertos depois das hecatombes da febre amarela, a partir de dezembro de 1849” (2000, p. 44); “É o Floriano, que ajudou o Deodoro a escramuçar o nosso imperador” (2000, p. 98); “Tinha os olhos muito azuis da família, a cara arquibondosa e arquialvar daquele Carlos de Habsburgo que seria imperador da Áustria por morte de Francisco José” (2000, p. 96).

O pessoal e o coletivo, diz Aguiar, o particular e o geral se fazem presentes, o que só poderia ser feito por um homem com forte senso de história do país, fazendo com que suas memórias ultrapassem a esfera restrita do depoimento pessoal (1998, p. 16).

NAVA, O POETA: SOLIDÃO E MORTE

Mordaz, sua linguagem transita entre a solidão e o ressentimento, entre a ironia e a crítica, entre o particular e o coletivo; entre o regional e o histórico; entre o micro e o macro mundo. Nava visita muitos mundos, porém são recorrentes em todos aspectos como a solidão, o ressentimento e a morte. As confissões de Nava são um convite a mergulhar na solidão, às vezes, consentida. Solidão do menino que perde o pai aos oito anos; solidão por se sentir alienado do grupo familiar, dos seus costumes feudais e injustos; solidão pela perda que, mesmo décadas depois, ainda parece perdurar e que desencadeia esse quase fascínio pela morte e pelo tempo. O autor os descreve, em várias passagens: “O tempo alado com sua ampulheta. A morte onipotente com sua foice” (NAVA, 2000, p. 68).

Outro aspecto recorrente é a presença da morte e o seu detalhamento. Em alguns trechos de Balão cativo, tais descrições  fazem lembrar seu “quase” contemporâneo Augusto dos Anjos. Em sua única obra, Eu e outras poesias, publicada em 1912, Augusto dos Anjos faz alusão à morte, em várias passagens, descrevendo, com termos pouco usuais ou incomuns para textos poéticos, as etapas da decomposição do corpo. Em “Psicologia de um vencido”, diz o poeta: Já o verme este operário das ruínas /Que o sangue podre das carnificinas / Come, e à vida em geral declara guerra, /Anda a espreitar meus olhos para roê-los, /E há de deixar-me apenas os cabelos, /Na frialdade inorgânica da terra! (ANJOS, 1998).  Nava descreve, de forma mórbida, o processo da morte: os germes já se foram e as baratas, quando vem o último conviva, a Lucilia tenebrans, a mosca tenebrosa que põe os ovos dentro do crânio esvaziado e cujas larvas se desenvolvem na manteiguinha que ficou de seus pensamentos, suas paixões, suas lembranças, sua memória. Depois eles voam por outros defuntos e, desértico, o gótico esqueleto vai se esfarelar submetido às leis da física e da química que regem os minerais. Os ossos vossos de cada dia (…) a putrefação. Nunca mais a esqueci. (2000, p. 67)

A RECOMPOSIÇÃO DO PASSADO EM BALÃO CATIVO: IMPOSSIBILIDADE E TRANSFIGURAÇÃO

Solidão e morte anunciam, em  Balão cativo, a impossibilidade da volta. É possível (re)visitar o passado, mas esta “volta” é marcada pela impossibilidade. A linguagem vivaz perpassa toda a obra de Nava, mas o irremediável está presente e denuncia a certeza do autor de que a volta foi deteriorada pelo tempo, pelo irremediável e pela dor. Entre o homem e suas recordações existe um fosso. Além da tênue divisória que separa memória voluntária de involuntária. O passado não pode ser reproduzido fielmente pelo memorialista, pois, ao recordá-lo, ocorre uma transfiguração de fatos e imagens.

Segundo Beckett, a imaginação aplicada ao que está ausente é um exercício no vácuo, incapaz de tolerar os limites do real. O contato direto  e puramente experimental entre o sujeito e o objeto torna-se impossível, uma vez que estão automaticamente separados em função da consciência que o sujeito tem de sua percepção, o que faz com que o objeto perca sua pureza (BECKETT, 2003, p. 79).

Ao fazer um paralelo com o épico, Aguiar afirma que o passado se recontrói de forma não linear, com idas e voltas repentinas, com superposições de planos temporais, com digressões e análises. E finaliza: o que volta não é o passado propriamente dito, mas suas imagens gravadas na memória e ativadas por ela em um determinado presente (1998, p. 25). Para ele, Nava sabia que recordar é sobrepor ao passado o presente, com sua acumulação de outros tempos passados. Essa característica da recordação “abre caminho para a imaginação criadora, que transfigura o acontecimento lembrado” (1998, p. 21). Para exemplificar sua afirmação, Aguiar cita um trecho de Balão cativo: “É impossível restaurar o passado em estado de pureza. Basta que ele tenha existido para que a memória o corrompa com lembranças superpostas” (NAVA, 2000, p.221).

“Nava sabia,” afirma Aguiar, “que primeiro seria preciso viver para depois narrar” (1998, p. 15). A busca do passado encontra, antes de tudo, a transfiguração, o deslocamento, as máscaras impostas pelo tempo e pelas mudanças que se impõem na vida de cada um e na sociedade. É uma volta inglória. Sem vencedores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Balão cativo encerra memórias contundentes, fortes, marcadas por uma linguagem irônica e, às vezes, melancólica, solitária. Nava reconstrói suas memórias com uma forte dose de amargura. A herança, as joias não ganhas pela mãe com a desculpa da viuvez, a injustiça a que eram submetidas as agregadas da fazenda, são algumas das passagens que deixam entrever a solidão do menino Nava, que não podia alterar a ordem dos acontecimentos.

Ao narrar sua trajetória, o memorialista conta parte da história vivida, apreendida por meio das lembranças pessoais guardadas. São referências à região em que passou a infância e até ao Rio de Janeiro, a acontecimentos que o marcaram.

Entre o homem e suas recordações existe um fosso. Entre Nava e a busca de seu tempo perdido também existem transfigurações. O passado não pode ser reproduzido fielmente pelo memorialista, pois, ao recordá-lo, ocorre uma transfiguração de fatos e imagens. Como afirma Nava, em Balão cativo, a memória corrompe o passado.

Na busca do seu tempo perdido, o escritor se depara não somente com os personagens que eternizou, mas também com a mágoa e o ressentimento, com a revolta contida contra os acontecimentos que não pôde alterar. É uma busca recheada de dor, a dor da perda paterna e da felicidade em família, em consequência do desamor de uma vida de submissão em casa da avó. Inhá Luisa, uma de suas personagens mais fortes, é fruto de todo o processo que envolve o homem e sua própria história. Nessa volta, Nava constrói um encontro corroído pelo subjetivo, pelo tempo e pelas transformações que acometem os cenários, a sociedade, a ele próprio e a sua identidade histórica.

A busca do passado encontra, antes de tudo, a transfiguração, o deslocamento dos fatos, as máscaras impostas pelo tempo e pelas mudanças que se impõem na vida de cada um e na sociedade. É uma volta inglória. Sem vencedores. O encontro com o real é quase ficcional, em que pese os velhos cadernos de anotações da avó, os seus próprios, os depoimentos e a verdade coletiva dos seus contemporâneos. Apesar disso, Nava reconstruiu para os leitores um acervo pessoal e regional importante, alçou Inhá Luisa e o seu clã ao patamar literário, imortalizando-os. Se não reconstruiu integralmente o seu passado, conseguiu refazer os caminhos da memória de toda uma geração. Ao revelar o seu mundo, Nava evidenciou um acervo cultural e histórico relevantes, e construiu uma obra literária original, em que se encontram as marcas tanto da cultura popular quanto da cultura refinada.

A mordacidade, a mágoa e a ironia se aliam à arte de narrar, de fazer uma literatura com marcas próprias, mas também universais, já que pode ser relacionado com autores imortais como Marcel Proust. Nessa trajetória, Nava passou do particular para o coletivo, do micro para o macro, do subjetivo para o racional, imortalizando os vultos que povoaram sua infância, como a incitá-los a um último embate. Ressuscitou os seus mortos e, assim, eternizou sua própria história. Nessa caminhada, a pequenez de relatos particulares transforma-se em grandiosidade que incita ao repensar sobre sentimentos inerentes aos homens no decorrer dos tempos.

REFERÊNCIAS

NAVA, Pedro. Balão cativo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.

AGUIAR, Joaquim Alves de. Espaços da memória: um estudo sobre Pedro Nava. São Paulo: EDUSP, 1998.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro Editora, 2006.

BECKETT, S. Proust. São Paulo: Cosac&Naify, 2003.

ANJOS, Augusto dos.  Eu e outras poesias. 42. ed. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1998. disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv.00054a.pdf, acesso em 10/02/2009.

Nota: Publicado originalmente na Revista Scripta Alumni, Número 02, em 2009, sob a orientação da professora Dra. Mail Marques de Azevedo.