Helena Arcoverde

Já publicado: O casamento

Posted in Conto by helenarcoverde on 22/05/2015

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Fotografia: acervo pessoal

Por Helena Arcoverde

O tailleur era azul claro. Mas havia naquela composição um tom sepulcral que até hoje é difícil definir. É como se beirasse ao marinho, embora não fosse. O sapato era sóbrio, fechado e o salto era mais discreto do que os que ela normalmente usaria. As pernas levemente roliças estavam envoltas em uma meia em que a costura dividia a batata da perna ao meio. Ela não olhou as meninas. Agia como se as evitasse.  Respirava pesarosa. Depois ela caminhara para o hotelzinho. E lá ficaria até arranchar-se em uma casa. Levaria de início uma vida mais simples. Sem o conforto a que se acostumara, mas que nunca a conquistara. Ela só queria o conto, embora tivesse sido criada para dele escapar. Quanto mais era estimulada a fugir dele, mas ficara fascinada pelo que nunca vira em casa. Tão bem criada tão malfadada, dizia a mãe quando se certificara de que a filha se afastaria do ensinado. O hotelzinho era próximo, iria caminhando mesmo. Dera as costas para a casa e não se voltou nem uma vez. Sempre apreciara contrastes. E desta feita conseguira. Os vultos, agora mais distantes –  eram pequenos. Os tons azulados eram quase violeta. Os sapatos marrons não mais se distinguiam e nem mais as pernas quase cobertas pelo linho violeta. A tarde se fora e os sinos da igreja bradavam, indiferentes àquele desfecho para as meninas cada vez mais singular. Não cabiam naquele episódio. Contemplavam o impacto. A roupa acinzentada se aproximava da calçada alisada com cuidado. As meninas se aproximaram do meio-fio. Ela se distanciava em diagonal. Não houve despedida. Ela dobrara a esquina, não poderiam mais vê-la. Não se voltara nem na dobra. Mas elas poderiam sentir o amargor da hóspede. Em um dos dias que se seguiram elas passaram nas imediações, não entraram. Havia algo de pecado naquele espaço.  Na frente, um pátio. Elas o olharam sem se deter. Passaram por acaso, acompanhadas por um dos adultos da casa. Ela deixara as sessões de leitura, as reflexões sobre as narrativas lidas em voz alta por outra ordem em que não haveria nenhum comentário sobre as sutilezas dos tons, sobre o reordenamento das nuvens. Por algum tempo ela conservara a roupa do casamento. Criada entre os símbolos aprendera a se desfazer de todos. Quando saíra do hotelzinho fora para uma casa com um quarto. Lá também havia um pátio, sem árvore. O interior da casa era sombrio e a engomadeira mal podia se mexer no espaço que antecedia o quintal. Uma caixa de água servia a duas casas e nesse espaço havia mais conversas sobre o cotidiano pelo qual optara. Décadas e as meninas ainda não conseguem saber com precisão como um tom de azul se transformara em violeta. O cabelo era preso com grampos grandes escondidos sob o cabelo. Os braços finos. Um bracelete de ouro pinçado de desenhos azuis os ornava. Uma aliança também de ouro fazia par com outra com uma carreira de pérolas. As unhas sem pintura. Um pequeno colar de mais pérolas enfileiradas enfeitava o pescoço magro e encompridado. O rosto sem maçãs salientes não ria. Uma carteira se mexia frouxa entre o braço e a lateral do corpo vestido de azul natier. Ela se fora pela calçada oposta a casa. E as meninas na calçada de cá olhavam a mãe na calçada de lá. Até que ela desapareceu ao entardecer. Os sinos ainda tocavam. Mas elas não o atenderam. O tailleur possuía um broche preso por alfinete escondido por baixo da gola. A blusa sob o casaco era de seda e aperolada. Um único botão prendia a abertura da blusa, nas costas. O casaco do tailleur findava pouco depois do cós da saia. Uma brisa quente tentava, inutilmente, movimentar a saia ajustada ao corpo que desaparecia entre as manchas da noite. Os sapatos das meninas se equilibravam na borda afiada do meio fio.

Entre a cruz e a espada

Posted in Crônica by helenarcoverde on 20/05/2015

Por Helena Arcoverde

Entre a cruz e a espada. Assim, o mercado de trabalho busca atalhos para fluir no estreito espaço entre a política econômica brasileira atual e os efeitos da internacionalização. Nesse processo, quase todos perdem. Um dos fatores mais prejudiciais se refere `a transição – já deflagrada – entre um capitalismo ainda por se consolidar e os arrufos de uma política hostil ao desenvolvimento da iniciativa a privada. Poderia se dizer que a relação do governo com relação ao empresariado é calcada na postura daquele que ama o filho – os frutos – mas não gosta dos pais- os provedores. Assim, é imperioso que a política econômica do país se defina- se puder- pois, nesse compasso, a União também irá `a falência e a população, como sempre historicamente ocorre, pagará a conta, que, já se sabe, está bastante alta.

O auditório

Posted in Conto by helenarcoverde on 15/05/2015

Os dois lados do decote findavam, no colo, com um laço do mesmo tecido. A textura tinha fios prata, que contrastava com o preto fosco do restante do tecido.  Os grampos se escondiam sob o cabelo preso em um coque. Na peça contigua, a outra moça usava uma saia franzida, com pregas presas por um cós endurecido pelo gorgorão. O perfume era discreto e custara pouco. Na rua detrás rapazes as esperavam. Deles só se sabia o nome dito sempre em meio à algazarra do após almoço.

Iam todos a pé e eles a empurrar as bicicletas lustradas possivelmente para os encontros. A maioria das ruas era forrada com paralelepípedos. Os saltos dos sapatos se desviavam das emendas entre as pedras. Os retângulos não luziam amofinados pela mistura das sombras e da iluminação tênue.

A noite não amedrontava naquelas épocas. O acompanhante as protegeria das cantadas, mas não dos olhares atrevidos. Algumas quadras depois, após guardarem os veículos, se enfileiravam na porta do auditório.

Estavam felizes. Lá dentro alguém traduziria sentimentos, o amor não correspondido, os desmandos que as tornavam frágeis lá fora. Não fumavam e a bebida era nenhuma. Só os homens – após escaparem para o banheiro- vinham com cheiro de álcool, logo dizimado pelas balas que traziam.

A abertura da porta principal fazia com que todos se voltassem. As cadeiras eram de madeira e os elogios do apresentador eram rápidos. O cantor adentrava e elas eram discretas ao suspirar. Enquanto ouviam os lamentos dos que amam sem serem correspondidos elas lançavam olhadelas para os namorados. Apesar do aparente entusiasmo, não eram  românticas, mas apreciavam comparecer aquelas cantorias para, como diziam, para “lavar a alma”.

Ao retornarem, elas vinham juntas e troçavam dos acompanhantes. Da esquina eles as protegiam com os olhares. A calçada agora dava sossego aos saltos. Não costumavam assumir namoros, embora desejassem um matrimônio. Temiam que algum deles fosse casado. Ao dormirem sonhariam com as canções e parceiros que nem sempre eram os acompanhantes.

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Posted in Fotografia by helenarcoverde on 05/05/2015

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