Helena Arcoverde

O sono

Posted in Conto by helenarcoverde on 25/01/2013

 Deitado, o olhar invadia facilmente o alto. Negava o tempo, cismando com os pontos mortos. Acordou do tempo sem marcas nem bem os primeiros raios se instalaram. Nunca abria de imediato as pálpebras. Preferia antes se certificar de ter escapado, ileso. Mas, naquela manhãzinha, sentou-se de supetão. Pássaros se movimentavam a alguns centímetros do seu rosto. Havia excesso nas cores. Depois do susto só conseguia lembrar-se do tom coral, embora soubesse que os outros eram igualmente intensos. O susto os afugentara para a zona do sono. Por alguns minutos não conseguia mover-se, ante a aproximação com o escondido, com a  fresta que raramente se deixa perscrutar. Temeu a fenda que, se instalada, não o deixaria mais transitar no cotidiano. À noite, resistiu novamente ao sono e, mais ainda, ao acordar.

O fim

Posted in Conto by helenarcoverde on 25/01/2013

Ao longe, parecia um grande besouro que se debatia ante toques ligeiros e contínuos. Com a chegada de moradores, o gato se afastara e ele teve tempo de fugir. Acossado a um canto, a escuridão  era apenas um prolongamento do que já vivera. De lá, ouvia o burburinho de vozes tão temerosas quanto ele. Antecipara o fim, nunca mais encontraria os outros alojados no teto, nem sentiria mais o vento disputando com seu abrir e fechar de asas o espaço de ninguém. Abdicaria dos passeios em bando, do asco e fascinação que despertava; do poderio a ser ainda angariado com o alargamento das asas. Assim recebera uma indecisa cutucada que enfraquecera seu corpo tenro e doído. Dispusera-se a se entregar aos algozes, quando percebeu que havia relutância no seu aniquilamento. É um morcego-bebê, disse uma voz jovem, frase aquiescida por outro. Mais distante,  outra lembrava os perigos que ele poderia representar. Essa última reacendera o medo. Um objeto pontudo o arrastou do canto para o meio da sala, espaço do qual fugira instantes antes. Abriu as asas demonstrando um poderio débil, mas que fizera com que os fustigadores recuassem alguns passos.

Parado, as asas abertas,  ele assim permaneceu por alguns instantes. Cansado, desistiu da pose voltando a encolher-se. Sentiu-se envolvido por uma malha áspera e que rangia ao acomodar-se a seu corpo. Depois, experimentou um voo sem asas e, ao final dele, seu corpo chocou-se a uma superfície dura e úmida.

Não  atinha-se ao fim iminente, pensava na quietude do telhado; na sintonia entre seus iguais, no contraste permanente entre o isolamento e o infinito. Ao longe, o bando abria e fechava as asas desafiando a imensidão da qual ele já não conseguia mais fazer parte. Fez algumas tentativas para se mexer, mas elas resultaram vãs.  Abriu e fechou os olhos. Esse movimento desencadeou uma dor que ele não sabia localizar e que, acrescida de um leve movimento, disseminou-se além de si. Recuou e ali permaneceu quieto, como se parado no ar. A manhã  ainda sem força o achara abatido, abraçado as próprias asas, incapaz de  alcançar além de si.

O teto agora ardia e a sensação da morte se antecipou. A inanição era inevitável. Grudado ao telhado, ansiava pelo seu interior. Mas a separação era maior que sua vontade. Bicadas ora agressivas, ora tênues se multiplicaram por todo o corpo. Agora ele voava. O ar rarefeito se misturava a uma sensação de leveza. A paz se instalara em seu corpo já sem dor. O infinito o aceitara sem que precisasse impor suas asas. Ali permaneceu, senhor absoluto do espaço antes sem dono.

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Fragmento

Posted in Conto by helenarcoverde on 24/01/2013

Parte da  incompletude sem a qual findaria ignoraria a dona de casa enquanto pararia abismada ante a mais singela louça. Insistiria na complexidade do bolo de domingo. Amaria os elos que daria vida, mas ansiaria ser parte de qualquer um. Liberta e aprisionada andaria pelas vielas da noite sem nunca tê-las conhecido. Apregoaria o que nem sempre creria. Almejaria a eternidade, mas dela suspeitaria. Amaria a poesia, mas optaria pela prosa. Apreciaria horas seguidas a flor efêmera dos descampados, mas a recusaria colhida. Refutaria o que fora e, outra vez, tentaria os acertos que tornam a vida única, embora não fosse. Ao final, cansada, derrearia a sacola de compras e, atenta, as guardaria no lugar de sempre.

 

O acerto

Posted in Conto by helenarcoverde on 24/01/2013

O banco  – que não ficava defronte ao rio Charles – em tudo combinava com a praça que ninguém mais queria. Alguns pombos, desassossegados, caçavam inutilmente resíduos trazidos pelo vento. Duas esculturas representadas por leões seguravam o peso dos raros visitantes. O cimento embranquecido do banco misturava-se com veios sinuosos formados por pequenas rachaduras que deixaram entranhar os restos do tempo. À frente, um velho tanque que antes pulavam meninos afoitos aproveitando-se do frescor trazido pelas sombras. Restos do cotidiano esvoaçavam outros se aprisionavam na grama amarelada. As árvores de raízes alargadas se esvaiam a mercê do desamparo. Mais adiante, moradores que ali pernoitam se amontoavam sob cobertas acinzentadas. A brisa desconsolada rasgava a esperança dos que ali perpetuavam suas mágoas.

Sentadas em um desses bancos  duas mulheres, postas uma ao lado da outra, não se olhavam. O silêncio entrecortava o ar, a espera que alguma palavra o salvasse da exaustão do nada. Vez por outra elas faziam menção de quebrar esse ensurdecido diálogo, mas desistiam. Passaram uma eternidade juntas uma à espera que a outra a fizesse feliz. Uma delas, ainda menina, finalmente indagou:

-O que você fez comigo?

As duas se olharam. Os olhares – inquiridor e conformado – pareceram sem fim. Não saberiam dizer quanto tempo passaram assim, matutando sobre o que as duas fizeram suceder uma à outra. Até que a menina levantou as duas mãos como a reafirmar a pergunta que fizera. A outra se virou novamente para a frente e assim ficou por um tempo. Parecia procurar amenizar a resposta que daria. Então, sem se virar para sua interlocutora, disse:

-Eu perdi o caminho de volta, não conseguia mais te encontrar. Não pude perguntar o que você queria que eu fizesse por nós.

A menina, abaixando as mãos, disse, desalentada:

-Eu sempre estive aqui, esperando ser chamada, entre a espera e o medo.

A outra rebateu:

-Nunca confie no futuro, ele nega tudo que prometeu, castiga quem o sobrecarrega. Nós devíamos ter iniciado uma caminhada sem amanhãs e sem pretérito. Queríamos o conto de fadas, mas ele não existe. Dissimulado, sempre diz ser a felicidade  mas ele é arredio e sempre foge. Precioso, sempre pensa ser mais que nós. E não é, o conto só existe se a gente ao invés de contar, viver; ao invés de esperar, fazer urgir. E você esperou por mim. E eu sou apenas o conto a espera da vida.

A menina cabisbaixa deixou-se derrear no encosto frio da noite. Só conseguia ver a poeira  que teimava em desarranjar a vegetação já morta do chão. A outra a olhou de relance. Também se sentia impassível diante do irremediável. Agora as duas estavam com as mãos postas sobre as pernas. Espalmadas  as mãos  enrijecidas se deixaram ficar. Os corpos agora cada vez mais próximos se protegiam do frio. A noite alongara-se.

Pela manhã, o vento aquietara-se e as folhas iludidas pela umidade da noite jaziam na relva clareada pelas luzes, ainda complacentes, daquela manhã. Os pombos, indiferentes, iam e vinham, com passos desconsolados. Perto do banco um pequeno ajuntamento. Curiosos olhavam uma mulher de meia idade sobre o banco, o corpo enrijecido pela morte. Enquanto algumas desistiam da cena, outras se achegavam, depois tornavam a se afastar da morte. Algumas folhas secas trazidas pela noite haviam assentado sobre a saia da mulher. Os sapatos pendiam dependurados apenas pelos dedos. Os leões impassíveis olhavam os calcanhares arroxeados e frouxos. Os olhos enegrecidos da estátua pareciam se vangloriar da vida. Depois tornavam a si, temerosos de perderem o amigo mais fiel que tiverem nesse longo tempo, o esquecimento.

 

 

 

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O batente

Posted in Conto by helenarcoverde on 18/01/2013

Por Helena Arcoverde

O batente ruía. Linhas sinuosas escurecidas se sobrepunham à tinta avermelhada que persistia em reinar na superfície. Pequenas ramificações se imiscuíam no pequeno vão cedido pelo tempo entre a parede e o batente. Ali o homem sentava-se nas primeiras horas da manhã e ao entardecer. Preferia a cadeira na calçada, como antes, mas se a pusesse, não haveria mais nenhuma outra. Além disso, com o tempo, os vizinhos passaram a lançar olhadelas pouco amistosas para a cena, o que fortalecera o hábito de sentar-se no batente.

Espremia-se contra a parede para não impedir a passagem dos outros moradores. Quando havia muita gente em casa, recostava-se à parede lateral da casa de esquina. Quisesse ou não, olhava reiteradas vezes o  batente. A areia trazida pelos calçados misturava-se aos trechos mais escurecidos. O vento desfazia esses vestígios, aplainando os resíduos. Por segundos a dignidade voltara. Os grãos, quase uniformes, escondiam a degradação ao formarem uma fina camada, reluzentes quando a luz incidia. Mas logo as passadas voltavam a desfazer o que o sopro remediara. Detinha-se nesse processo, quando uma mão no ombro o devolvera à razão. Era um dos vizinhos. Momentaneamente, esquecera o batente.

Dia seguinte, às primeiras horas do dia, lá estava novamente. Todos foram trabalhar, poderia esparramar-se na entrada. Sentara-se e derreara as mãos deixando-as descansarem no espaço que sobrara nas laterais. Olhou para si próprio abandonado sobre o velho batente. Só então, observou a presença de outras rachaduras que deixavam a mostra os tijolos submersos anteriormente na grossa camada de cimento. Rapidamente retirou a mão da superfície. Apreciou detidamente a deterioração. Depois, olhou seus braços, ainda levantados. Estavam enrugados, encardidos, esmaecíveis ante qualquer encosto. Levantou-se, temeroso. Pisadas vindas do interior da casa o obrigaram a recobrar-se. O morador parecia não perceber sua presença. Mesmo assim, ele acenou. As respostas não tinham nenhuma importância.

Cansada do peso das compras, a vizinha descansara as sacolas no batente. Enquanto isso, trocara palavras com ele, que agora recostara o corpo  à parede. Estava cansado. As sacolas foram erguidas e manchas úmidas se somaram às já existentes. O batente, momentaneamente inservível, parecia ainda mais alquebrado. Resolvera entrar. Não sairia mais do quarto nem ao entardecer. Lá dentro ouvira ruídos de ferramentas e pensara que fizera bem em não ter saído. Mais um vizinho resolvera remendar a casa.

Aos primeiros raios de sol nem esperou o cheiro forte do café, dirigiu-se à calçada para o costumeiro duelar. Ao aproximar-se da entrada percebeu-a coberta por tapumes. Parou, como a tentar atinar  o significado daquela cena. Ainda não se refizera do susto quando ouvira a voz da mulher alertando-o de que o cimento ainda não secara.

Alçou  o olhar mais  adiante e viu, quase no meio-fio, restos de tijolos, resíduos de areia e pedaços de cimento endurecidos. Com esse é preciso mais cuidado não vá se folgar com esse como fez com o outro, dizia a mulher. Nos dias que lhe restaram limitou-se ao minúsculo quintal, um retângulo entre o seu quarto e o restante da construção. Sem cadeira e nem batente, permaneceu ali todas as manhãs até desistir de duelar consigo mesmo. Não saíra mais do quarto. A cada dia as réstias renovadas de sol lambiam-no. Depois, lentamente, elas se iam. E ele próprio, como os demais moradores, esquecia que ainda pulsava.

O silêncio suplantara as réstias. Sonharia para sempre. Nele, todos estavam sentados na calçada. O batente, viçoso fora coberto com um pó vermelho misturado ao cimento. Lustroso, ele encantava a todos que por ali passavam. Durante algumas horas do dia tinha a companhia de um tapete estampado, que derreava suas franjas no afã de protegê-lo por inteiro. Sentados próximos a ele, na calçada, a mulher o acariciava timidamente. Os pequenos se chegavam ao pai, afáveis. As bocas todas se movimentavam e a dele, contente, fazia o mesmo. Era feliz.

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