Helena Arcoverde

Posted in Ensaio by helenarcoverde on 26/04/2016

cores

Crédito: Helena Arcoverde

Por Helena Arcoverde

 

[…]  Se o que caracteriza o poema é sua necessária dependência das palavras, obrigando-as a ir além de si mesmas (PAZ, 2012, 191), o que caracteriza Ladri di biciclette é sua subserviência a um espaço de emergência e instantaneidade, em que os vieses da realidade se repetem continuamente história afora.

As marcas do espaço, no entanto, não impedem que as cenas se desenrolem como poemas e, como afirma Paz, “o poema não teria sentido – nem sequer existência – sem a história, sem a comunidade que o alimenta e à qual alimenta” (PAZ, 2012, 191).

E – desde as primeiras cenas – esses poemas denotam o desmoronamento da ilusão. A mudança é negada. A tragédia social é anunciada e a sobrevivência é o elo sem nenhuma outra unidade. O ar é de monotonia e morosidade. O sobreviver se impõe aos sonhos, soterra o encantamento.  […]

LADRI DI BICICLETTE: O APRISIONAMENTO EM MEIO À EMERGÊNCIA E INSTANTANEIDADE

Posted in Ensaio by helenarcoverde on 02/06/2015

bice editada

imagem editada arquivo pessoal

Por Helena Arcoverde [1]

INTRODUÇÃO

Em Ladrões de bicicleta, 1945, direção de Vittorio de Sica, a imagem se sobrepõe à palavra e os instantes são aprisionados pela poesia. As palavras saem de cena, prescindem de sons e grafias, rolam na direção do drama. E este se desdobra ante a uma realidade impassível.

Se o que caracteriza o poema[2] é sua necessária dependência das palavras, obrigando-as a ir além de si mesmas (PAZ, 2012, 191), o que caracteriza Ladri di biciclette é sua subserviência a um espaço de emergência e instantaneidade, em que os vieses da realidade se repetem continuamente história afora.

As marcas do espaço, no entanto, não impedem que as cenas se desenrolem como poemas e, como afirma Paz, “o poema não teria sentido – nem sequer existência – sem a história, sem a comunidade que o alimenta e à qual alimenta” (PAZ, 2012, 191).

E – desde as primeiras cenas – esses poemas denotam o desmoronamento da ilusão. A mudança é negada. A tragédia social é anunciada e a sobrevivência é o elo sem nenhuma outra unidade. O ar é de monotonia e morosidade. O sobreviver se impõe aos sonhos, soterra o encantamento.

Espaço e tempo: emergência e exceção

Espaço da emergência e da instantaneidade; da improvisação e privação. Das condições extremas, da desistência do porvir. As tomadas iniciais mostram o recuo dos desempregados ao subirem alguns degraus que dão acesso ao funcionário da agência de empregos. Eles alçam os degraus, mas recuam com a chegada do homem.

Mesmo a cidade apresentando um cenário de pós-guerra, em que a reconstrução seria prioridade, não há vaga para pedreiros – prenúncio de uma transformação morosa. Os indícios são de estagnação.

Assim, o espaço é o do recuo, do retrocesso, do impedimento. Os desempregados permanecem abaixo dos degraus – rente ao chão – sem perspectivas. Os degraus representam a separação, a divisão entre as classes sociais, a dificuldade que encontram os personagens em se mobilizarem. As escadas se entrecruzam como símbolos do trabalho braçal e não da ascensão. Na cena em que o instrutor afirma a Antônio que o trabalho de colador de cartazes exige inteligência, os cartazes são fixados desleixadamente na parede, formando-se dobras não desmanchadas. As escadas entrelaçam-se plasticamente em inúmeras cenas do filme. Na agência de emprego a que o protagonista comparece as escadas também são postas sobre os ombros. E, quando Antônio finalmente sobe a escala para colar os cartazes, há a derrocada, em face do roubo da bicicleta, o que o obriga a descer.

Porém, quando Antônio revê o filho no alto da escadaria, após o medo de perdê-lo para o rio, ele faz uma escalada de sucesso rumo ao filho. Sorte no amor, azar no jogo.

Espaço em que os personagens – como a cultura da cidade – “podem ser esquecidos, deslocados e retorcidos em face das forças históricas e sistema de poder” (XAVIER, p. 339). A emergência, os destroços e o deslocamento se impõem em função de um tempo de exceção.

Os personagens, coletivamente, cumprem um deslocamento físico obrigatório em um tempo inalterado. Como um autômato o grupo se move a procura de emprego. Eles se afunilam, mas não há saída, estão à mercê de velhas ordens e comandos. À mercê do aprisionamento de um espaço-tempo.

A capacidade de “ver o tempo, de ler o tempo no todo espacial do mundo” e também de “perceber o preenchimento do espaço não como um fundo imóvel e um dado acabado de uma vez por todas mas como um todo em formação, como acontecimento” (BAKHTIN, 2006, p. 225) não parece mais fazer parte do mundo decomposto dos personagens de Ladrões de Bicicleta. Eles foram alijados e se movimentam não pela análise dessas configurações, mas pelo imediatismo, pelo desdobrar dos acontecimentos, pela imprevisibilidade.

O espaço é especialmente fragmentado, pois traz resquícios da destruição, da calamidade social, do salve-se quem puder. As instituições não respondem à demanda, falham na resposta ao colapso. E a praça é o local do exílio, do perambular em busca de. Os logradouros públicos são o espaço coletivo – o que sobrou, o abrigo possível.

Essa produção fílmica é também o espaço da disputa: pelo emprego, pela água, pelo transporte. As filas, a vergonha, a exposição pública. O espaço em que o homem mostra-se impotente ante o crescimento da necessidade. A cena em que o homem escala a pilha de objetos penhorados em um depósito em que Antônio Ricci fora buscar sua bicicleta mostra que o homem é pequeno ante o número de objetos retidos. Quando a tomada é feita em um plano mais geral, mostra que na medida em que o funcionário escala as prateleiras os volumes aumentam – a miséria cresce. E o homem está perdido em meio a um caos malvado.

Também é o espaço da falência das instituições, como se observa na cena em que Antônio dirige-se `a delegacia de polícia para comunicar o roubo da bicicleta. Quando adentra no espaço da devoção e é expulso. As instituições, feitas – entre outros – para resolver, apresentam os primeiros sintomas da falência, ao se isolarem do público, a se negarem a responder.

As filas expõem o anonimato. Antônio é o representante de todas as pessoas que se enfileiram para sobreviver no espaço da ausência de privilégios, no espaço do sacrifício.

A produção fílmica representa ainda o espaço do não visto, do metafísico. Tanto a mulher de Antônio quanto ele próprio vão a uma vidente para certificar-se do que virá. Ele, embora mostre-se incrédulo com o aconselhamento da vidente, recorre a esta quando não consegue transpor as dificuldades pelas quais passa. Desanimado, comenta com o filho que nem as velas que a mãe acende trará melhoria para a família. Assim, credulidade e incredulidade marcam a relação dos personagens com esse lado místico.

Por fim, o espaço-tempo, nesta produção fílmica, é uno, um serve ao outro. Ambos remetem ao irremediável. O tempo é pouco para reaver a bicicleta, para que se desenrolem ações que tragam de volta a ferramenta de trabalho. Acerca do espaço-tempo, Bakhtin afirma que por meio deste “obtém-se assim o mundo concreto, visível e único do espaço humano e da história humana (BAKHTIN, 2002, p.260). Há uma linearidade não passível de interferência dos personagens, compacta, irredutível.

O herói

O herói Antônio – vivido pelo ator Lamberto Maggiorani – não tem ares de “mocinho” e sua verdade não inclui jornadas extraordinárias e nem combates mitológicos. É um herói sem pompa, sem linhagem. Sua verdade se confunde com o sobreviver a qualquer custo, com a aridez da jornada em um contexto destroçado em que os menos favorecidos são mais fortemente impactados. É o herói que peregrina em busca da justiça, de reaver o que lhe fora tirado, que faz tentativas, que endurece e se enternece com o filho. Que acusa o “culpado” que também – igualmente- não tem rosto e é representado pela multidão de iguais.

“Tendo cruzado o limiar, o herói caminha por uma paisagem onírica povoada por formas curiosamente fluidas e ambíguas, na qual deve sobreviver a uma sucessão de provas”. (CAMPBELL, 2007, p.57). Ricci fora há muito iniciado nesse “caminho de provas” que se configura como a própria miséria, em uma sequência infindável de dificuldades que marcaram uma vida de provações. E o roubo da bicicleta é uma dessas provas e esta se desdobra por meio de várias situações.

“O herói é auxiliado, de forma encoberta, pelo conselho, pelos amuletos e pelos agentes secretos do auxiliar sobrenatural que havia encontrado antes de penetrar nessa região” (CAMPBELL, 2007, p.57) Ricci não é reconfortado por amuletos e nenhum auxílio sobrenatural, mas sim por Maria, a esposa, que o aconselha, o guia nessa jornada pelo emprego, pela bicicleta, pelo pagamento do penhor.

O filme retrata a luta e a verdade de dois heróis que se alternam: o pai que busca – nem sempre com estratégias equilibradas, o que perdera, e o filho Bruno, vivido por Enzo Staiola – que tem como verdade tomar as decisões possíveis no lugar daquele que nem sempre consegue pautar suas ações de forma lógica. O filho que toma a si o papel de tutor, mesmo que , para tanto, tenha que sacrificar sua infância. Em alguns momentos perde essa condição de herói, quando promete contar tudo a mãe ao chegar em casa, o que o faz retornar `a infância, sair da rua para casa. Cabe ao pai – na cena em que estão no restaurante – chamar a atenção do filho sobre a condição econômica a que estão submetidos afirmando que este precisaria de muito dinheiro para igualar-se a criança de família abastada com a qual troca olhares ao lado de sua mesa.

Personagens

Herói anônimo assolado pelas intempéries e pela miséria, Antônio – protagonista de Ladrões de bicicleta representa como outros tantos, a tragédia da pobreza. Representa o(s) outro(s). A invocação de seu nome logo na cena inicial, o que seria uma marca identificatória – não concretiza nenhum fortalecimento de identidade. O personagem foi pinçado apenas para representar os outros presentes naquela praça e nas filas da cidade. Mesmo chamado pelo nome, ele apenas representa, remete a qualquer outro.

Considerações finais

Ladrões de bicicleta – produção atrelada ao neorrealismo italiano, expõe as ordens desiguais pelas quais passam uma família de trabalhadores. Sem trabalho, sem transporte, sem dinheiro, eles são submetidos ao sofrimento imposto por essas ordens para sobreviverem. Vitimas e algozes trocam de papeis e se interpelam em uma catástrofe do pós-guerra que bem poderia se confundir com muitos outros espaços contemporâneos. Os elementos da realidade usados no filme alçam herói – Antônio – e o filho Bruno a condições de heróis representantes de outros igualmente comprometidos pela miséria.

Referências

PAZ, OTÁVIO. O arco e a lira. São Paulo: Cosacnaify, 2012.

BAKHTIN, Mikhail. Estética a criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. São Paulo: Annablume Editora, 2002.

XAVIER, Ismail. A alegoria histórica. In:RAMOS, Fernnao Pessoa. Teoria contemporIaanea do cinema. Pós-estruturalismo e filosofia analítica. Volume I. São Paulo, SENAC, 20

[1] Helena Arcoverde é ex-professora e ex-jornalista.

[2] PAZ, OTÁVIO. O arco e a lira. São Paulo: Cosacnaify, 2012.

O ESPAÇO VIRTUAL, AS REDES SOCIAIS E A (RE)CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA

Posted in Ensaio by helenarcoverde on 01/11/2014

ARCOVERDE, HELENA[1]

helenarcv@yahoo.com.br

helenasobralarcoverde@gmail.com

www.helenarcoverde.wordpress.com

 Introdução

Os avanços da tecnologia não surgem impunemente. Se no poema “os vultos surgem impunes, aproveitando as diferença das ruas sem o sol[2]” na  tecnologia os avanços ocorrem à luz do dia e com o consentimento da madrugada. Mas há preços a serem pagos. Há conquistas a serem angariadas. Há controvérsias resultantes de mandos e ideologia. Há resistências a mudanças. Há aqueles que não dormem sem elas, mas a detratam. A tecnologia, no entanto,  rasga as resistências e convence pelo benefício e comodidade. A cada avanço ordens são redimensionadas. Quando a ciência não engajada avança de forma intensa, as aplicações ficam mais visíveis e disponíveis a uma maior parte da população. A Revolução Tecnológica do Século XX rende. E vai render ainda mais porque ela se desdobra. Vence – nesse espaço – o diálogo. A inclusão digital vence não pelos treinamentos inconsistentes, mas pela insistência na utilização, pela fascinação do alcance, pelo desbravamento. Ante o exposto, o ensaio pretende fazer um levantamento acerca dos traços presentes no espaço virtual e de como eles contribuem para a reconstrução das lembranças individuais e coletivas.

O recompor de lembranças e o espaço coletivo

Quando Maurice Halbwachs[3] levantou os pressupostos de Memória Coletiva não imaginara que seus estudos se aplicariam – em parte– a um mundo que devastaria os padrões que se conhecia até então em termos de propagação de informação, interatividade, memória e  armazenamento de informações.  Neste âmbito, as lembranças compartilhadas largamente recomporiam as  individuais mais amplamente do que um simples reencontro de colegas de classe. É, Halbwachs estava certo mesmo considerando-se modelos e ordens diversas. Sem abraços emocionados e olhadelas furtivas para “curiar[4]” as marcas do tempo, os colegas poderiam prescindir – caso quisessem – da presença física e dialogarem cotidianamente acerca do tempo, da política e do passado. Postariam fotografias e ajudariam aos mais afastados a recomporem os fatos e ambientação do passado, como enfatizava o estudioso quando dizia que – em determinadas circunstâncias (como a ausência) – é necessário recorrer ao outro para recompor fatos passados.

Tempo e espaço se mancomunam com a efemeridade. O rei é destituído pelo povo que se utiliza da força devastadora da instantaneidade. As praças estão em rede e se proliferaram indefinidamente. Tempo e espaço se castigam, senhores de uma eternidade roubada.

Se o mundo virtural leva consiga as marcas do mundo físico, ele também as nega, as anula, as questiona. Longe de anular identidades, elas são reforçadas pelo outro, pela memória do outro, pelo diálogo (im)possível formado por vozes de diferentes origens e teores. É o ajuntamento que o mundo físico não previra, não achara possível. A acentuação da desigualdade social e econômica atribuída ao mundo virtual é apenas uma espécie de  síndrome da catástrofe que enfeita, mas não convence.

Homens de diferentes poderes aquisitivos entrecruzam suas falas, mesmo que indiretamente, dialogam, expoem suas ideias, divergências. E a porta da rua não é serventia da casa[5] pois as portas são inúmeras e a saída de uma poderá ser a entrada de outra(s).

Espaço da transfiguração e deslocamento

O mundo virtual é marcado pelo deslocamento[6]. Fora do espaço tradicional, sem a pressão do face a face, as identidades são trasnfiguradas, deslocadas, sim, mas não necessariamente anuladas. Se a massificação anula por um lado, por outro dá voz, ampliando-as, multiplicando-as, mesmo para aqueles que – fora desse contexto – nem seriam parte de.

Outro questionamento muito comum até mesmo fora dos círculos acadêmicos é o de que – sendo parte do processo de globalização, o mundo virtual (mais precisamente as redes sociais) estaria aniquilando a cultura regional, reduzindo o uso de termos regionais, por exemplo. Estes – ao contrário – (como mermã – minha irmã, usado em alguns estados do Nordeste) são largamente usados na internet. É certo que – assim difundidos- passam a não ter mais seu uso restrito. Mas que mal há nisso? Os efeitos da globalização são visíveis porém esta perpassa todos os outros – da economia às relações interpressoais – e não apenas os diálogos e relações presentes nas redes sociais.

É possível que essas identidades sejam até mesmo fortalecidas. O eleitor não é mais uma simples possibilidade de voto, ele é capaz de formar opinião – antes restrita a algumas categorias – de eclodir uma discussão que ele mesmo não sabe que proporções terá.

 O espaço do heroi foi deslocado

O herói do espaço virtual nem sempre é aquele que se espera no âmbito tradicional. Como todo herói, ele escapa do estabelecido, risca trajetórias e arrisca, traça tomadas e retomadas. É “aquele que aprende” (CAMPBELL, 2007, p.117). O espaço da trajetória do herói no ciberespaço e – mais precisamente – nas redes sociais, foi deslocado. Saiu do esperado para o inesperado, para o não previsível, para alojar-se em um espaço obtido graças a tecnologia e a verdades e sonhos que somente um herói é capaz de trilhar e perseverar.

Espaço deslocado e glória fugaz. Heróis sem nome, surgidos da “noite para o dia”, com suas potencialidades multiplicadas e redimensionadas. O herói também se espalha, se impõe em condições não supostas inicialmente. Com poucas exceções (Steven Jobs, alçado a uma categoria de herói graças a seu empreendedorismo e poder criativo à frente de empesas ligadas à tecnologia) essa glória é curta aos moldes desse espaço. O espaço virtual alça à categoria de herói, mas o destrona em um curto espaço de tempo pois outros fenômenos surgidos negam os anteriores. A tecnologia imita a vida com sua efemeridade e pressa em findar e (re)surgir. É o espaço da fugacidade e o tempo entre essa glória e o esquecimento, entre o sucesso e anonimato é curto.

Espaço do subterrâneo, impalpável, transgressor

O impalpável permeia esse espaço que se busca a concretude por meio de diálogos, atitudes, resultados. A internet e, principalmente, as redes sociais são o espaço do subterrâneo, da transgressão e ousadia. Da eclosão do escondido, do sufocado pelas normas seculares oriundas das instituições como a escola e – atualmente – o politicamente correto.

O espaço reservado aos comentários é, pricipalmente, o da transgressão, do desafio, do não oficial. É nesta fresta de liberdade e infinitude que a norma de conduta é quebrada, ouvidada, desacreditada. Atrocidades e ofensas são “cuspidas” e “atiradas” em alguns casos aleatoriamente. Sem alvo certo, elas resvalam em receptores também aleatórios.

O subterrâneo é o espaço do desafio, do não controlado, não medido, do imperceptível. Daquilo que escapa pelos atalhos, pelas vielas não vistas, não controladas.  Essa fresta nasce da expansão e, contraditoriamente, da imposição que esse crescimento proporciona e que poderia ser taxada – entre outras denominações – de liberdade não consentida, mas possível em  face de.

 Eu e o outro(s)

As redes sociais oportunizam o recontar de histórias, o redirecionar de conversas, a autonomia que falta em inúmeros espaços físicos e também é parte desse espaço subterrâneo. Expansão e restrição se intercambiam, se tocam, se embicam. Possibilitam a alteração de desfechos. Quando se manipula uma imagem parodiando, por exemplo, uma determinada questão atual, dá-se uma mudança de foco, um tratamento gráfico aliado à ironia, à ridicularização, ao jocoso. Mas, também, uma outra mensagem, uma nova remessa, com novos receptores. Nas redes sociais o homem é o foco, é a ele que se dirige a mensagem, o convencimento, o apelo[7], a esperança de.

Os dizeres disseminados transitam em terreno minado – próprio do subterrâneo – já que caminham pelo imprevisível, chegam a destinos não traçados, sem previsibilidade absoluta.

A história alheia é também a minha. É o espaço da negação da autoria, da usurpação. O espaço da autoria anônima. Do não reservado. Este é restrito uma vez que o glamour está na exposição, no número de vieus, no coletivo. As redes sociais são o espaço da transfiguração, do “toma-lá e não dá cá”, das considerações, desconsiderações e reconsiderações, do furtivo em que pese os interesses políticos ou legais. É o espaço do risco. Mandatários e usuários comuns refazem enfrentamentos e duelos pelo poder de convencimento, do angariamento de adeptos.

“Eu não existo sem você”[8]. O discurso se impõe. E, como diz Mikhail Bakhtin ao analisar o dialogismo na obra do escritor Dostoiéviski, esse diálogo “dirige-se intensamente a si, a um outro, a um terceiro […] não se pode falar sobre ele, pode-se apenas dirigir-se a ele” (BAKHTIN, 2010, p. 292)

O impacto é permanente,  negado por novas chegadas, sem tempo hábil para as retomadas. Mas essa pressa representa negação da memória? Talvez não. Os tempos de resposta são curtos mas – ao longo dos dias– as questões retornam, são retomadas, reincluídas, pois mesmo transformadas, são parte dos processos de comunicação e trabalham com  as relações humanas, alteradas por novos modos, mas com a capacidade de retomar, buscar, refletir, analisar, retrabalhar.

É o espaço escorregadio e do acirramento entre a liberdade e a norma. A liberdade de expressão perseguida pela legalização do controle, pela imposição da moral, da ética e da lei. A ética – esquálida e em desuso nos gabinetes e organizações – é exigida no virtual como forma de regular, impedir, monitorar, desarticular.

É o espaço da recomposição dos fatos do passado a partir do outro. A partir – como afirma Halbwachs – das lembranças do outro[9]. É o espaço da cooperação,  da dádiva, da produção sem fins lucrativos e sem autoria.

A memória histórica – termo usado por Habwachs em Memória Coletiva, é reconstruída. Fotografias de cidades, infância, de logradouros públicos são postadas e comentadas, aumentando mais facilmente essa reconstrução. Os locais públicos alçados à categoria de sagrado. Ícones religiosos amplamente difundidos. Reconstrução feita por mutirões coletivos. A lembrança não é mais relegada e sim prorizada, uma contradição com a pressa, o esquecimento, a descartabilidade.

 Outras considerações

Indiferente às acusações – em parte alarmistas, o mundo  virtual multiplica relações, abre caminhos e atalhos, burla vigilâncias, transita do subterrâneo a caminhos oficiais, reinventa, aplica descobertas. Multiplica vozes e, assim, inclui. Anula glória e assim exclui. A síndrome da dizimação e da catástrofe infestam mas não impedem as frestas e a expansão, o uso consentido ou não.

As redes sociais igualam, contrapõem, oportunizam o discurso. As regulações – adaptadas a cada linha de mando dos difertentes países – controlam mas a infinitude e expansão própria desse espaço criam frestas e caminhos paralelos. Quantidade não controlável em sua totalidade e o avanço da ciência asseguram a autonomia e a liberdade do discurso. O bem coletivo – conhecimento, produção, lembranças – são compartilhadas, difundidas, partilhadas.

Referências

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense universitário, 2010.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro Editora, 2006.

HALL, Stuart. Pensando a Diáspora: reflexões sobre a terra no exterior. In: Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:Editora UFMG,  2003.

ARCOVERDE,H. Poema sem título. Disponível em http://www.helenarcoverde.wordpress.com. Acesso em: 28/08/2014.

 

[1] Docente aposentada, ex-jornalista.

[2] ARCOVERDE, H. Poema disponível em http://www.helenarcoverde.wordpress.com

[3] HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro Editora, 2006.

[4] Uso regional. Observar algo curiosamente, prescrutar.

[5] Alusão ao dito popular “A porta da rua é serventia da casa”.

[6] Conforme Hall, “esse cordão umbilical é o que chamamos de ‘tradição’, cujo teste é o de sua fidelidade às origens, sua presença onisciente diante de si mesma, sua ‘autenticidade”’ (HALL, 2003, p. 29)

[7] Termo usado por Bakhtin quando se refere quando diz que – na obra de Dostoiéviski, o homem seria o sujeito do apelo (2010,p. 292).

[8] Título da canção composta por Tom Jobim e Vinícius de Moraes.

[9] Segundo Halbwchs, “temos de trazer uma espécie de semente da rememoração a este conjunto de testemunhos exteriores a nós para que eu ele vire uma consistente massa de lembranças”. (HALBWACHS, 2006, p. 33). Ainda conforme esse autor, Porém, “para que a memória dos outros venha assim reforçar e completar a nossa é preciso que as lembranças desses grupos não deixem de ter alguma relação com os acontecimentos que constituem o meu passado” (HALBWACHS, 2006, p. 98).

 

A reconstrução do passado em Cinema Paradiso

Posted in Ensaio by helenarcoverde on 12/10/2012

Por Helena Arcoverde

Apresentação

Adiável mas inevitável; sofrido, mas catártico; desfigurável, mas realinhador. Cinema Paradiso, dirigido por Giuseppe Tornatore, 1989, contém esses traços que representam a busca fascinante e temida do passado. O homem retorna para dialogar com seus duplos, para findar a ausência, para os acertos que um dia não pode mais adiar. O personagem Salvatore di Vitto – Toto – revive um passado marcado pela emoção e impregnado pelo viés subjetivo, “uma vez que entre o passado e o presente estão o tempo, as particularidades, o conflito, o espaço modificado e até, em muitos casos, o medo de confrontação com o próprio erro”. (Arcoverde, 2010, p.3).

A verdade do herói e cineasta é desconstruir “para reafirmar o que antes era plausível, mas que o tempo tornou incerto” (Arcoverde, p.49), enveredar pelas vielas da infância, pelo espaço pungente e atroz do passado. Reencontrar o menino e o quase adulto para um diálogo decisivo sobre si.

E, nessa volta, namora o tempo que se esvaiu, o amor deixado para trás, os personagens sem os quais não seria o mesmo, como o velho Alfredo, vivido nessa produção italiana e francesa por Philippe Noiret.

Espaço e tempo

O tempo, não linear, é enviesado como o são em geral os contares que retrocedem, buscam um renascer impossível e contraditório; querido e indesejado; pulsante e inerte. Essa volta, em Cinema Paradiso, é viabilizada pelo espaço – o velho cinema. A cidade e o velho prédio dão corpo às memórias do cineasta fazendo-o encontrar o menino e o moço Toto, os amores por Alfredo e Elena, o encantamento primeiro pelo cinema.

A cidade é o espaço da despedida, dos amores perdidos, dos dramas familiares que conflituam, transfiguram os lugares confortáveis do presente. É a volta para reencontrar o perdido, o que ficou guardado na alma e que, vez por outra, ameaça desestabilizar o presente.

Toto voltou para reviver o espaço que se tornou sagrado, impregnado de lembranças que até poderiam adormecer, mas que mediante a notícia da morte de Alfredo – urgiram. O passado irrompeu intempestivo e incontrolável; assentado e encontrável; conformado e rebelde. E o menino Toto – Salvatore Cascio – voltou a dialogar com o adolescente – Marco Leonardi e com o adulto – Jacques Perrin, uma conversa marcada pela dor, emoção e esforço para preencher, refazer, dar vida.

O passado não é arrematado para Salvatore, mas enviesado, marcado pela incompletude, embora o adulto tenha realizado o sonho do menino, ou, quem sabe, o contrário. O velho prédio fascinou o menino tanto quanto ao adulto. Ao menino esse espaço proporcionou a descoberta; ao adulto o reencontro, a redescoberta, a volta necessária e imperfeita do passado, alçado ao presente sem o aval do tempo.

Considerações finais

Cinema Paradiso, independente da crítica que a ele possa se atribuir, permanecerá porque seu tema gira em torno de um espaço com os quais muitos um dia se defrontarão: o terreno intrigante e não confiável do passado.

UM MERGULHO NA POESIA DE “O CARTEIRO E O POETA”

Posted in Ensaio by helenarcoverde on 15/06/2012

Por  Helena Arcoverde

Resumo

Breves considerações acerca de alguns elementos da narrativa no filme O carteiro e o poeta. Ainda a verdade do herói e como a poesia emerge em um contexto de silêncio e não alteração dos costumes, contexto vivenciado pelo personagem Mário R. Linearidade e mudança marcam tempo e espaço em uma narrativa sem pressa de ser contada.

Palavras-chave

Romantização, mudança, palavra, poesia.

Rumo à metáfora

A árdua caminhada em direção ao dizer poético – a redenção – ao bilhete para abandonar o silêncio em que estivera mergulhado no espaço doméstico por toda uma existência, para escapar da solidão sem palavras do pai, para se reportar ao amor.  A poesia traria isso tudo ao personagem de Massimo Troisi em O carteiro e o poeta.  Depois da subida íngreme em direção à casa do poeta Neruda, a imensidão agora metaforizada oferecia novos discursos. E o personagem de poucas palavras pede a ajuda da poesia para reafirmar o direito de  ouvir o cantar do mar, das palavras e do amor. A jornada em direção ao mundo das metáforas é interrompida  pela dor que sobreveio à transformação.

A verdade do herói

A poesia sem nome, sem refinamento, sem interlocutores, mas que estava disposta a desabrochar de forma tão veemente que brotou do mar, da terra, do coração do personagem que ali esteve sempre à espera que ela batesse a sua porta. Mas ela não veio e ele foi buscá-la montanha acima – no seu próprio local de criação. E o tilintar de talheres e panelas passaram a ter a companhia dos sons da vida que são parte do dizer poético; e o personagem não falará ante  um interlocutor silenciado pelos dias – como ocorre na cena em que constrói um diálogo sem respostas com o pai durante a refeição; não terá dias tão previsíveis. Refutará o silêncio impiedoso que não nomeia, não conversa, não incita. Mário encantará as palavras até que elas se rendam ao seu fascínio e nomeará os diferentes sons que fazem da vida igual e particular; ilusória e consistente; plural e uno – o som do mar, do filho, da natureza bravia ou terna.

O silêncio não é anulado somente pela busca da palavra por parte do herói, ele é perpetuado ao denotar as palavras não ditas, o esquecimento a que é submetida aquela comunidade, o sofrimento imposto aos que não fazem uso social (e diversificado) da língua, em que pese dela necessitem para viver, para se comunicar, para dizer sim ao amor, não à injustiça.

Em Vidas Secas, o poder toma de Fabiano a mercadoria a ser vendida, a que saciaria momentaneamente a fome dos filhos, mas ele não conseguia fazer uso da língua, protestar contra aquele ato que levaria sua família a se aproximar ainda mais da fome. Mas enquanto o herói de Graciliano matutava contra as injustiças e buscava uma forma de enfrentar as adversidades da terra e dos homens, o herói italiano buscava superar o silêncio e ser agraciado pela palavra.

A verdade desse herói é sair do mundo sem nome, escapar da zona sem palavras e, de posse da descoberta, enlaçar o amor improvável. O amor sempre fora susceptível às palavras e Mário Ruoppolo, o personagem carteiro, sabia disso. É esse guerreiro das composições, o entregador de mensagens que será o sujeito do fazer poético, o agraciado pelos deuses em manter um contato sagrado com um poeta maior – Neruda, representado pelo ator Philippe Noiret. Assim, constitui-se em um ser privilegiado, um intermediário entre o poeta e a nova morada, aquele que, de posse do fazer metafórico, o conquistará.

E é o carteiro que refaz os trajetos para levar ao poeta a informação – as cartas, a correspondência que o ligarão ao seu mundo. Em troca, o poeta retribui-lhe, mostrando-lhe aonde se esconde  o dizer que encanta os homens através dos séculos – o dizer singular de confronto do homem com o mar, do feito com a natureza, da representação com o objeto, da conversa singular e ilusória do poeta com o mundo.

O espaço e o tempo entre o mar e a montanha

O espaço do filme dirigido por Michael Radford transita entre a palavra e o silêncio, entre a solidão e a conquista, entre a montanha e o mar, entre o canto e o ruído. Mas está centrada, também, na alma, na transformação advinda do dizer metafórico, da linguagem particular dos versos, porque ” Y el verso cae al alma como al pasto el rocio[i] “.

Espaço e tempo são voltados à mudança, à transformação, ao poder do homem em face da palavra. O silêncio é derrotado, mesmo sendo ele parte da reflexão que ronda todo o filme. O espaço é o do exílio, das mudanças construídas no confronto com a diferença.

O espaço é o do exílio romantizado, de privilégios, de clausura consentida. O elemento externo como desarticulador, como agente de mudança. Uma colonização também romantizada, mas desagregadora dos valores regionais, instauradora do que está além da terra e do mar dos moradores,  fomentadora de uma cultura do outro, apesar de “consentida” e até ansiada. Não invasora. A presença do poeta tece novos valores que não se impõem, mas se instalam em terreno que já ansiava por mudança.

O tempo é linear e transcorre ao sabor das românticas peripécias desse herói que faz das palavras sua arma – uma novidade no mundo marcado pelo silenciar. A subida que dá acesso à casa do poeta, a velha bicicleta, o mar, tudo compõe um tempo e espaço romantizados. O amor move o carteiro, mas o que alimenta a narrativa é o poder de transformar pelo saber, pelo conhecimento, pela percepção e observação da realidade. A poesia, ao final, permeia todo o espaço e o tempo, a visão de mundo única que só ela consegue assegurar e perpetuar.

O espaço em que vive o herói é de certa forma deslocado em mais de uma ocasião: quando ele consegue o emprego e, com isso, se desloca do mar para o alto do morro  para levar as correspondências ao morador famoso. Sai da comunidade pesqueira para a montanha; do silêncio doméstico para aquisição de outros saberes; quando ele, dessa experiência, passa a interagir de forma mais atuante tanto em sua comunidade quanto no âmbito mais pessoal – nesse último caso, o espaço é o mesmo, mas o deslocamento se dá em virtude de sua transformação.

As palavras, para o carteiro, estavam apenas submersas, a espera de serem alçadas, invocadas para o amor, para a conquista, para o levante, para ampliarem sua atuação como sujeito capaz de, suscetível a. A poesia já pulsava dentro de si a espera de ser exortada a refletir sobre o mar e a terra de maneira particular.

Os poetizares de Mário estiveram à espera de sua hora, de serem livres do esquecimento e do anonimato para se mostrarem, para desdizerem e aflorarem. E o personagem que representa o poeta chileno nada mais fez do que iluminar esse canto obscuro e esquecido em que eles sempre estiveram dentro de Ruoppolo.

Considerações  finais

Foi exortado pela palavra, pela força invasiva e discreta da poesia. Com esta deslocou-se da solidão para o amor; do silêncio para o levante; do mar para o morro. Conheceu a dor, argumentou, poetizou . Metaforizou e sonhou. Reagiu ao silêncio. Transformou ruídos em sons. Reviu a imensidão do mar. Perscrutou a dança possível mesmo no exílio. Refez sua própria existência. Essas descrições bem poderiam representar Mario Ruoppolo em O carteiro e o poeta com a certeza de que o homem não vive sem as palavras – sobrevive – e vice-versa.

A busca pela poesia em um mundo sem poesia, em que pese os cenários, poderia dar a dimensão do filme que, se pretendia centrar no poeta chileno, acabou por alçar o carteiro não a um aspirante ou aprendiz, mas a um iniciado seduzido pela paixão que a palavra tem exercido sobre o homem através dos tempos.

Nesse filme o expectador experimenta uma narrativa sem pressa rumo à contemplação do mar, da montanha, do silêncio e da transformação. Degusta a poesia que impregna uma narrativa romantizada em que, mais uma vez, o elemento externo impõe mais mudanças ao outro do que a si. Ainda assim, a poesia prevalece, pois ela, ao final, é quem traz a mudança.

Referências

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas.  Rio de Janeiro: Record, 2007.

XAVIER, Ismail. A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

O CARTEIRO E POETA. Direção de Michael Radford. Itália, 1994. (109 min).

[i]  Verso de Poema 20, Pablo Neruda.