Helena Arcoverde

AS IMPLICAÇÕES CRÍTICAS DA SÁTIRA E DA CARNAVALIZAÇÃO EM O SONHO DO TIO DE DOSTOIÉVSKI

Posted in Artigo by helenarcoverde on 29/03/2012

Obs.:Artigo já publicado anteriormente neste espaço, agora na íntegra.

Helena Arcoverde

helenarc@yahoo.com.br

RESUMO: Este artigo procura evidenciar, à luz de algumas teses de Mikhail Bakhtin em Problemas da poética de Dostoiévski, especificamente a sátira menipeia e a carnavalização, além de teses de outros teóricos, a presença de procedimentos tais como o extravagante, o satírico e o carnavalesco no romance O sonho do tio, de Dostoiévski, a fim de desvendar, através da ultrapassagem do corriqueiro, as profundezas do comportamento humano, os desvios de caráter e as concessões que os personagens fazem em nome de vantagens pessoais. A crueza da maioria desses tipos humanos realça a forma dinâmica da estrutura do romance, calcada em três planos, uma vez que a ação e as síncrises dialógicas fazem os personagens transitar entre a Terra, o Olimpo e o Inferno.

PALAVRAS-CHAVE: Dostoiévski. Bakhtin. Sátira Menipeia. Carnavalização

ABSTRACT: This article tries to put into evidence, in the light of some of Mikhail Bakhtin’s theses in  Problems of Dostoevsky’s Poetics, specifically carnivalization and the Menippean satire,  and also of theses of other theoreticians, the presence of artistic procedures such as the extravagant, the satirical and the carnivalesque in Dostoevsky’s Uncle’s Dream. The aim is to unveil, by surpassing the ordinary, the depths of human behavior, the deviations of character and the concessions that the characters make in the name of personal profit. The crudity of most of these human types, in its turn, enhances further the dynamic form of the structure of the novel, based on three levels, since the action and the dialogical sincreses make the heroes ascend into heaven, descend into the nether world or wander on earth.

KEYWORDS: Dostoevsky. Bakhtin. Menippean Satire. Carnivalization.

INTRODUÇÃO

Ao discutir a noção de construção da arte literária, J.Tynianov já afirma que este princípio não é estático, como habitualmente tratado, e que, similarmente, a entidade estática da personagem é extremamente instável e  depende inteiramente  do princípio de construção, podendo oscilar  no decorrer da obra, na maneira que lhe é prescrita, em cada caso particular, pela dinâmica geral da obra. Deste modo, não haveria “herói estático, apenas heróis dinâmicos” (TYNIANOV, 1971, p. 99-101).

O sonho do tio, de Dostoievski, expõe os ardis de Maria Alieksándrovna para assegurar o futuro de Zina, sua filha, casando-a com o decrépito Príncipe K., sob os olhares e intrigas dos moradores da pequena Mordássov. O Príncipe K. transita do extravagante ao ingênuo, do ridículo ao generoso, enquanto Maria Alieksándrovna mostra-se uma heroína intensa, com uma performance dinâmica, pois ela transita da Terra aos Céus e ao Inferno, em uma aventura que beira ora ao cômico, ora ao dramático. Similarmente, a crueza dos tipos humanos construídos por Dostoiévski, marcados, nesta novela, pelo extravagante e satírico, garantem-lhe uma forma dinâmica e evidenciam a realidade à luz do realismo, crítica social e materialismo, concepções marcantes no contexto vivenciado pelo autor russo. Esses personagens, sob a influência do carnavalesco, também se mantêm no limiar entre a realidade e o impensável, desnudando-se diante de nossos olhos através de seus conflitos e diálogos.

Por essa razão, este trabalho visa investigar, usando as teses bakhtinianas sobre a sátira menipeia e a carnavalização da literatura, de que modo os procedimentos artísticos usados por Dostoiévski desvendam, ao ultrapassar o corriqueiro, as profundezas do comportamento humano, os desvios de caráter e as concessões que os personagens fazem em nome de vantagens pessoais.

A SÁTIRA MENIPEIA EM O SONHO DO TIO:

Como argumenta Bakhtin, a sátira menipeia tornou-se um dos principais veículos e portadores da cosmovisão carnavalesca na literatura até nossos dias (BAKHTIN, 1997, p. 113) e suas características, como gênero carnavalizado, encontram-se concretizadas em muitas obras de Dostoiévski. Em O  sonho do tio, especificamente, o enredo projeta diversas características da menipeia, quais sejam: situações extraordinárias para provocar a palavra e a verdade, o herói em busca da verdade, elemento cômico, estrutura triplanar: terra, olimpo, inferno; diálogos no limiar, cenas de escândalos, comportamento excêntrico, discursos inoportunos, publicística atualizada. Todas essas características estão, como salienta Bakhtin, profundamente integradas numa unidade orgânica, mesmo que sejam analisadas separadamente neste  trabalho.

Situações extraordinárias para provocar a palavra e a verdade

Em O sonho do tio foi criada uma trama de forma a comprovar a mesquinhez de moradores de pequenas cidades como Mordássov, capazes de promover ações danosas ao outro por meio de situações embaraçosas e distantes da ética e do bom senso. A concepção filosófica e científica do século XIX era voltada à comprovação da sordidez humana, do lado sombrio e oculto do homem. As artimanhas da heroína Maria Alieksándrovna, a traição de Páviel Alieksándrovich e de Vássia, as futricas das amigas de Maria Alieksándrovna representam a mesquinhez e a ausência de propósitos nobres, tudo isso sob a égide da sátira e da crítica social. Mesmo diante da autonomia que Dostoiévski costumava proporcionar aos seus personagens, o pano de fundo desta novela revela uma série de situações que contribuem para comprovar a verdade: o homem pode ser sórdido e mesquinho, guiado pela busca do poder e da riqueza. Isso ficava mais evidente em uma trama em que o cenário é uma pequena cidade onde todos os moradores, independente da classe social, se conhecem. Enfim, o patológico que impregna o homem surge, reiteradas vezes: “Não vou descrever todas essas senhoras. Direi apenas que nos seus olhos brilhavam centelhas de uma malícia especial. Todos os rostos mostravam expectação e uma impaciência verdadeiramente doentia” (DOSTOIÉVSKI, 1993, p. 958).

O herói em busca da verdade

Em O  sonho do tio existem várias verdades: a de Maria Alieksándrovna, dominar a cidade com sua capacidade de conhecer a verdade do outro e esconder a sua própria; a do Príncipe K., continuar sendo sedutor, admirado tanto pelos seus dotes físicos quanto intelectuais; a de Zina, o amor e a decência.

Maria Alieksándrovna é a heroína em busca da verdade, em busca do poder diante de sua cidade, do prestígio junto à alta sociedade, a procura de aumentar suas “cento e vinte cabeças de alma” à custa de um casamento vantajoso para sua única filha, Zina, pois com relação ao marido já perdera as esperanças de conseguir alguma vantagem. Maria Alieksándrovna detém conhecimentos sobre a verdade dos moradores de sua cidade, “conhece pormenores tão importantes e tão escandalosos acerca de mais de uma pessoa respeitável de Mordássov, que, se alguma vez os contasse, demonstrando, além disso, a sua verdade, como só ela sabe fazê-lo, certamente repetir-se-ia em Mordássov o terremoto de Lisboa.” (DOSTOIÉVSKI, 1993, p. 877).

Essa busca é intensificada, uma vez que os seus objetivos iniciais foram modificados ao vislumbrar a possibilidade de casar a filha com o Príncipe, o que faria com que o personagem, através da filha, tivesse acesso a uma outra classe social, a nobreza e a uma herança muito acima do padrão a que estava habituada.

Estrutura triplanar: terra, olimpo, inferno, diálogos no limiar

Apesar dos dissabores com a demissão do marido e com os falatórios sobre sua única filha, a situação de Maria Alieksándrovna  era estável, acostumada a ser a senhora mais importante de Mordássov, mesmo diante das vicissitudes para se manter neste posto. Essa era sua realidade e representa, na estrutura triplanar, a terra. O olimpo, em O sonho do tio, está representado pela situação almejada pela personagem: um casamento com um nobre e uma herança que possibilitariam à família e, em especial, a ela, ascensão social e um mundo de viagens e luxos. O inferno, evidentemente, foi o desmoronamento desse sonho e a desmoralização vinda desse episódio. A descoberta de suas artimanhas para casar a filha e fazê-la herdar a fortuna do nobre, o seu destronamento.

Cenas de escândalos, comportamento excêntrico, discursos inoportunos

Esse aspecto da sátira menipeia é um dos mais intensos em O sonho do tio. Ao “satirizar a sociedade mesquinha de uma pequena cidade provinciana, preocupada apenas com a intriga, a bisbilhotice e a maledicência invejosa”, Dostoiévski utiliza, entre outros procedimentos, os conclaves, ocasião em são expostos, em forma de escândalos e conflitos, a  fragilidade das relações entre os personagens. Para Grossman, ao conduzir a cena do escândalo ao apogeu, Dostoiévski desvia abruptamente a ação, da ocorrência vulgar, para o patético e o heróico (GROSSMAN, 1967, p. 38).

O trecho a seguir dá início ao conflito ocorrido na casa de Maria Alieksándrovna, onde ocorre o conclave. Seguem-se acusações e as situações de conflito e escândalo são extremas: “As senhoras subiam as escadas e chilreavam como andorinhas. Maria Alieksándrovna não queria acreditar naquilo que os seus olhos viam e os seus ouvidos ouviam. – Tanta gente aqui! – disse. – isto parece uma conspiração! Vamos a ver o que isto vai dar! Embora, a mim… não me metam medo estas palermas… Esperem que já vão ver” (DOSTOIÉVSKI, 1993, p. 949).

A excentricidade e ingenuidade marcam a imagem do príncipe. Manipulado pelos que dele se aproximavam, esse personagem é alçado ao ridículo tanto pela sua descrição física quanto pelo alheamento que demonstra com relação à realidade.

Já os discursos inoportunos perpassam quase toda a novela e, em sua maioria, ficam por conta de Maria Alieksándrovna e de suas companheiras de mexericos. Uma das interferências mais inadequadas fica a cargo de uma das amigas de Maria Alieksándrovna, Sófia Pietróvna, a Coronela, que, em mais de uma ocasião, extrapola as normas e convenções sociais. Ao invadir a residência de Maria Alieksándrovna sem ser convidada, como já era hábito, a personagem faz uma declaração inapropriada para aquele e qualquer outro momento: – Sófia Pietróvna! – exclamou Maria Alieksándrovna relativamente tranquila, apesar de estar como brasa: – ouça – Já sei, já sei, chama os seus criados e manda-me pôr na rua! Não é? Mas não se incomode, eu vou-me embora sem ser preciso isso. Adeus e case sua filha com quem quiser; e a senhora, Natália Dimítrievna, não tem nada que rir-se de mim, vá para o diabo mais o seu chocolate. Eu não fui convidada para esta casa, mas também não dancei o kasatchok para o distrair! Mas afinal por que se ri, pode saber-se, Anna Nikoláievna? Pois olhe, fique sabendo que Suchílov acaba de quebrar uma perna e tiveram que levá-lo para casa. E a senhora, Felissata Mikháilovna, tome cuidado, se a sua criada Matriona, que anda descalça, coitada, não se lembrar de levar a vaca todas as manhãs para o campo, de maneira que não se ponha a mugir todos os dias junto das janelas, qualquer dia parto-lhe uma perna. Bem… fique com Deus Maria Alieksándrovna e passe muito bem! (DOSTOIEVSKI, 1993, p. 961-962)

Em outra passagem, ao descrever a voracidade com que as inimigas de Maria Alieksándrovna ansiavam pelos escândalos, o narrador diz: “Algumas tinham ido ali com o propósito deliberado de testemunhar um escândalo, daqueles que se tornam famosos, e não perdoariam a si próprias se perdessem semelhante oportunidade”.

A maior parte dos personagens, não somente a Coronela, fazem repetidas declarações inadequadas, ora em tom de elogio, ora em tom de ironia e maledicência. Estas falas se contrapõem às oportunas interferências de Zina, que, com propriedade e postura digna, defende suas ideias sob a égide da ética e da honestidade, embora, por mais de uma vez a personagem faça concessão aos propósitos da mãe.Os discursos e declarações inoportunos estão presentes de forma intensa. A voracidade com que as personagens buscam seus objetivos contribui para que esse recurso seja vasto.

Elemento cômico

O sonho do tio é uma novela marcada pela comicidade. As personagens, os diálogos e a própria interferência do narrador remetem ao cômico, como ocorre no trecho: “ A meu ver, a colocação que desde o princípio estaria mais indicada para ele teria sido a horta, para desempenhar, e de certeza que o desempenharia na perfeição, o ofício de espantalho” (DOSTOIÉVSKI, 1993, p. 879).

O cômico também está presente nos diálogos entre a heroína Maria Alieksándrovna e o seu marido, Alfanássi Matviéievitch, sobre quem exerce grande domínio. Na tentativa de fazer o marido participar, conforme planejara, de suas estratégias, Maria Alieksándrovna trava com ele um diálogo cômico para o leitor, mas trágico para Alfanássi, incapaz de compreender os estratagemas da esposa: – Quê? Mas tu fazes caracois, homem! Tu usas caracois postiços? Hão de ficar muito bem nessa cabeça de martelo! (…) – Mãe…zinha! – balbuciou por fim o sobressaltado marido, sem se levantar do lugar e dirigindo um olhar implorativo à severa esposa – Mãezinha!- Quantas vezes já te disse, quantas vezes tentei fazer entrar nessa cabeça de burro que não sou tua mãe? Eu, tua mãe, idiota? (DOSTOIEVSKI, 1993, p. 945) – Mas… se me perguntarem alguma coisa?- Não respondes, faz de conta que não ouviste.- Mas, isso não parecerá mal, Maria Alieksándrovna?- Bem, então dizes um monossílabo, como por exemplo hum! Ou qualquer coisa do gênero, de maneira que dês a entender que és um homem esperto e pensas duas vezes antes de dizer uma coisa.- Hum!- Compreendes? Vens comigo e eu digo que tu, assim que soubeste da visita do príncipe, te apressaste, muito lisonjeado, a vir à cidade com a intenção de apresentar-lhe os teus respeitos e de convidá-lo para as nossas terras. Compreendes?- Hum! (p. 948)

Publicística atualizada (literatura político-social)

Com linguagem mordaz e crítica, O sonho do tio apresenta preocupação com as questões sócio-políticas da época em que viveu Dostoiévski. A narração possui um tom muito aproximado das colunas de jornais da época, onde a informação se misturava às opiniões pessoais (no caso, o narrador) do jornalista, com uma linguagem que oscilava entre o irônico e a mordacidade. Mesmo tendo se diferenciado dos demais, o autor russo manteve-se atrelado às concepções literárias e filosóficas do seu tempo. Em O sonho do tio perpassa também a questão da denúncia social, que no século XIX era uma questão urgente e instigante.

Quando o Príncipe chama os seus criados de imbecis, termo que acha adequado à criadagem, ou quando Maria Alieksándrovna os denomina de malandros (p. 896) constitui-se uma forma de o autor chamar a atenção, denunciar as desigualdades existentes na Rússia, uma crítica aos costumes e valores da classe dominante. É como se o autor criticasse a naturalidade com que essa classe vê e pratica as injustiças sociais. São situações que expõem os pressupostos e as lutas sociais marcantes no século XIX.

Em outra passagem, ao aludir a sua participação na maçonaria, o Príncipe fala sobre a alforria de Sidor, e trava o seguinte diálogo com o sobrinho: – Mas, tio, se fizer essa viagem ao estrangeiro, pensa emancipar todos os seus camponeses? – exclamou Mosliakov rindo-se às gargalhadas.- É claro! Adivinhastes o meu pen…sa…mento! respondeu imediatamente o príncipe. –e É essa a minha intenção. Transformá-los, de servos, em trabalhadores livres.- Mas, por amor de Deus, príncipe, olhe que lhe fogem todos quando fizer isso, e depois, quem é que paga as rendas? – objetou Felissata Mikháilovna . (DOSTOIÉVSKI, 1993, p. 964)

A carnavalização em O sonho do tio: além do plausível

A cosmovisão carnavalesca, princípio consolidador de todos os elementos da menipeia, está presente em O sonho do tio em vários âmbitos: na construção das personagens, nos costumes dos moradores, na forma como se dão os conflitos, nas relações limites estabelecidas entre eles e suas atuações. Além das imagens do riso e do comportamento extravagente, revela-se, principalmente, através da coroação bufa e do destronamento de Maria Alieksándrovna, levando ao desenlace.

A carnavalização da literatura, diz Bakhtin, tornou possível a criação da estrutura aberta do grande diálogo, permitiu transpor a interação social entre os homens para a esfera superior do espírito e do intelecto, que sempre era predominantemente esfera da consciência monológica única, do espírito uno e indivisível que se desenvolve em si mesmo. Por essa razão, o homem nunca encontrará sua plenitude apenas em si mesmo (BAKHTIN, 1997, p. 180).

A carnavalização foi um dos recursos que possibilitou, a Dostoievski, ultrapassar os limites da criação literária na Rússia de sua época. Com esse gênero e outras marcas, tais como a capacidade de transitar entre os gêneros (lírico, dramático, satírico, entre outros) e evitando a terminalidade de diálogos, ideias, construção de personagens, enfim, da sua própria criação literária, Dostoiévski imprime a sua criação um caráter de continuidade, de processo, “uma aproximação dos limites”. É como se houvesse não um fio condutor que norteasse sua construção, porém que garantisse a autonomia de todo o seu processo criador.

A carnavalização também possibilitou a Dostoiévski evidenciar o caráter e comportamento das pessoas que não poderiam revelar-se no curso normal de suas vidas (BAKHTIN, 1997, p. 165). A extravagância, a loucura, a ganância de Maria Alieksándrovna, a rede de mexericos da cidade, o ato de ciúme de Vássio que o levou a divulgar uma carta de amor entre ele e Zina, provocando escândalo que desonra a namorada, a sucessão de planos mirabolantes de Maria Alieksándrovna, são processos intensos e extremos.

Todos eles estão no limiar da sanidade, do bom senso, do aceitável. Não apenas os homens e seus atos, como também as ideias abandonaram os seus ninhos hierárquicos fechados e passaram a chocar-se no contato familiar do diálogo absoluto. (BAKHTIN, 1997, p. 169)

Tudo exige sucessão e renascimento. Tudo é mostrado no momento da transição não concluída. (BAKHTIN, 1997, p. 169) Para Bakhtin, ao tornar relativo todo o exteriormente estável, constituído e acabado, a carnavalização, com sua ênfase nas sucessões e na renovação, permitiu a Dostoiévski penetrar nas camadas profundas do homem e das relações humanas (1997, p. 168).

A carnavalização, garante Bakhtin, não é um esquema externo e estático que se sobrepõe a um conteúdo acabado, mas uma forma insolitamente flexível de visão artística, uma espécie de princípio heurístico que permite descobrir o novo e o inédito (1997, p. 168).

O extravagante

O extravagante marca boa parte dos personagens da novela O  sonho do tio: a atuação de Maria Alieksándrovna, com as tentativas de manter o prestígio na cidade, usando ardis para que todos dela dependessem, enquanto o Príncipe K., ausente da realidade, beira ao ridículo. Suas descrições são marcadas pela extravagância, como se pode observar nos trechos seguintes: A um primeiro e distraído olhar, ninguém tomaria o príncipe por um homem de idade, muito menos por um velho. Só depois de o observar mais de perto e atentamente é que se repara que o infeliz é um cadáver montado sobre molas. Deitaram mão de todos os artifícios para disfarçar de adolescente essa múmia. A peruca, de uma naturalidade assombrosa; as suíças, o bigode e as moscas reluzem com um negror magnífico e cobrem-lhe metade do rosto. A outra metade usa-a artisticamente empoada e não deixa ver a menor ruga. (DOSTOIÉVSKI, 1993, p. 893)

Segundo Bakhtin, a ideia artística de Dostoiévski não concebia nenhuma significação humana sem elementos de certa extravagância. Em vários de seus personagens, há sempre algo de ridículo, em diferentes graus de intensidade (BAKHTIN, 1997, p. 151).

O riso

Todas as formas do riso ritual estavam relacionadas com a morte e o renascimento, com o ato de produzir, com os símbolos da força produtiva. Nele se fundiam a ridicularização e o júbilo (BAKHTIN, 1997, p. 127). Em O sonho do tio, o riso é voltado para a ridicularização: a oposição da sociedade a Maria Alieksándrovna; as respostas em geral são marcadas pelo escárnio e pelo riso. Quando a heroína foi desmascarada, sucedeu-se a este fato o riso e consequente humilhação. Da mesma forma, quando a Coronela invadiu o conclave na casa de Maria Alieksándrovna e fez um discurso inoportuno direcionado a quase todos os presentes, a resposta também foi o riso.

Quando o riso não se manifesta de forma explícita, faz-se presente de forma sutil: durante os diálogos envolvendo o Príncipe e Mosliakov, por exemplo, ocasião em que o ingênuo tio confessa todos os mecanismos usados para conservar-se mais jovem, tais como suíças pintadas e bigode postiço:- Pois olha, é para que saibas, é pos…tiço!- exclamou o príncipe, pousando sobre Mosliakov um olhar de triunfo.- Mas será possível? Ninguém diria! E as suíças? Confesse, tio, que as suíças pinta-as.-Pinto-as! Sim, pinto-as! Também são completamento … pos…tiças!-Isso não pode ser, tio! Desculpe, mas não acredito. O senhor está brincando comigo”. (DOSTOIÉVSKI, 1993, p.952)

A coroação e o destronamento do rei

O destronamento do rei, diz Bakhtin, se opõe ao coroamento. É como se o rito de destronamento encerrasse a coroação, da qual é inseparável. O Carnaval, diz o autor, triunfa sobre a mudança. Nada absolutiza, apenas proclama a alegre relatividade de tudo (BAKHTIN, 1997, p. 125).

Maria Alieksándrovna diante dos conclaves e conflitos inevitáveis dá mostras de suas reais intenções. O herói é desmascarado, é destronado. Maria Alieksándrovna, com suas estratégias para manter suas conquistas de poder diante da cidade, é afastada da sua posição diante da comunidade e destronada outra vez do-quase posto de mãe da mulher do Príncipe K.

Suas opositoras e inimigas declaradas na cidade se vangloriam diante da derrocada da heroína, que decaíra do posto de senhora mais importante da cidade. Caiu em ruína, foi ridicularizada, sob risos e humilhações: As senhoras retiraram-se no meio duma grande algazarra e gritaria. Maria Alieksándrovna acabou por ficar sozinha entre os escombros da sua glória. Todo o seu poder, todo o seu prestígio, toda a sua importância.desabaram numa noite. Compreendia que nunca mais poderia elevar-se de novo a tal altura. O seu despótico domínio de tantos anos na boa sociedade de Mordássov ruíra definitivamente. (DOSTOIÉVSKI, 1993, p. 976)

O Príncipe K, tratado em quase todo o decorrer da novela com reverência e admiração, bajulado por quantos conseguiam se aproximar dele, também foi destronado, em cena que demonstra o cruel, o esmagamento do perfil do Príncipe, sua verdade escondida. Para Bakhtin (1997, p. 164), esse destronamento do rei carnavalesco, que ele denominou de noivo carnavalesco, “é coerente com um dilaceramento, uma típica separação carnavalesca sacrificatória”: Se eu sou um barril, você é aleijado…-Quem, eu aleijado?- Isso, mesmo, aleijado, e ainda por cima banguelo, é assim que você é!-E ainda zarolho! Gritou Maria Alieksándrovna.-Tem espartilho em vez de Costelas –acrescentou Natália Dmítrieva.-Tem a cara sobre molas!-Não tem cabelo próprio!-Bigodes de imbecil, postiços – completou Maria Alieksándrovna.-Deixe-me pelo menos o nariz, Maria Stepânovna, é verdadeiro – gritou o príncipe, pasmado com franquezas tão inesperadas… -Meu Deus! – dizia o coitado do príncipe. – Leve-me para algum lugar, meu amigo, senão me estraçalham!.(DOSTOIÉVSKI, 1997, p.164)

Assim, o príncipe foi despojado de seu prestígio de nobre, de pretenso noivo, de amigo de Maria Alieksándrovna. Também foi ridicularizado e ficou à mercê do riso, do desnudamento de seus segredos mais íntimos. A ruptura no relacionamento com as senhoras da cidade, em especial com Maria Alieksándrovna, o destronou de sua coroação anterior, passando a ser tratado como uma pessoa qualquer, sem a elegância e reverência costumeiras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de retratar a realidade de seu tempo, as sórdidas notícias de páginas policiais, os vultos que transitavam na alta sociedade russa, Dostoiévski procurava, através do carnavalesco, do extravagante, ultrapassar o corriqueiro, evidenciando, como ocorre em O  sonho do tio, as profundezas do comportamento humano, os desvios de caráter, as concessões feitas em nome de vantagens pessoais, o lado obscuro, satírico, lírico ou dramático que o ser humano possui e que, normalmente, se esconde debaixo do superficial. Os personagens postos à prova diante de tramas e conflitos desnudam seus propósitos, o seu “eu” íntimo. Dostoiévski, em O  sonho do tio, constrói personagens excêntricos como o Príncipe K, Maria Alieksándrovna e a Coronela; fracassados e frágeis de caráter, como Páviel Alieksándrovitch; firmes de caráter, como Zana, enriquecendo-os ao imporlhes os fios norteadores do carnavalesco. As particularidades da Sátira Menipeia estão presentes, de forma significante, em O sonho do tio, imprimindo um caráter quase lúdico a uma novela, tida pelos críticos como leve em comparação ao restante da obra de Dostoiévski, apesar das concepções filosóficas, científicas e literárias e, em especial, da denúncia social que desenvolve.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M.  Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

DOSTOIÉVISKI, Fiódor M.  Obras completas. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar Editora, 1993.

GROSSMAN, L. Dostoiévski artista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

TYNIANOV, J. Teoria da literatura: formalistas russos.  Porto Alegre: Globo, 1971.

Nota: Publicado originalmente em Scripta Alumni, sob a orientação da doutora Sigrid  Renaux

4 Respostas

Subscribe to comments with RSS.

  1. Washington said, on 30/03/2012 at 03:59

    Amiga, primeiro vou esse romance de Dostoieviski – O sonho do tio -, depois leio seu artigo.

    • helenarcoverde said, on 30/03/2012 at 09:01

      Ótimo. Abr, querido amigo.

  2. Washington said, on 30/03/2012 at 04:00

    Digo: vou ler.

    • helenarcoverde said, on 30/03/2012 at 09:01

      Leia, sim. Vamos procurar um congresso ou revista pra gente enviar um artigo. Vamos escrever alguma coisa juntos. abr


Deixe um comentário